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Críticas

Cineplayers

A estrada que conduz ao (in)consciente.

9,5

 

SPOILER ALERT!
A crítica abaixo discute pontos importantes da trama.
Leia apenas depois de assisti-lo ou a faça por sua conta em risco.

 

Há um momento crucial em A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997), em que Fred (Bill Pullman) encara a escuridão que toma conta do fim do corredor de seu apartamento e, depois de alguns segundos, decide percorrer nessa direção, pouco a pouco, até ser absorvido por completo pelas sombras. Renee, sua esposa, chega logo em seguida e chama por Fred, mas não recebe nenhuma resposta. Depois dessa sequência, a consistência das imagens e dos signos construídos até então por David Lynch começa a se alterar, dissolver, até se desmanchar por completo na cena em que Fred está em uma cela de prisão e metamorfoseia-se em outro homem. É o momento de virada da trama, quando toda a linha de raciocínio desenvolvida até então é rompida juntamente com o senso de orientação e lógica do espectador, obrigando-o a rever toda sua percepção da história e a encarar, contrariado, um novo plot se desenrolar a partir do nada.

Ao deixar que Fred desapareça pela escuridão, é como se David Lynch o estivesse absorvendo como parte estática de sua imagem, como que o aderindo ao cenário e assimilando-o dentro do universo de signos sombrios que transitam livres pelo filme. Em um entendimento mais metafórico, é como se Fred se deixasse dominar por completo pelo seu outro lado, atravessasse a linha tênue e obscura que divide o universo real e o paralelo, ou enfim se rendesse aos seus medos mais nefastos. Nesse mundo demente arquitetado por Lynch, os signos não necessariamente significam algo ou possuem algum propósito – pelo contrário, eles se sustentam independentes uns dos outros apenas com o objetivo puramente imagético de atingir o receptor. A beleza de seu cinema está nesse desprendimento da lógica e na apropriação de elementos aleatórios para a provocação de uma reação. No caso de um filme de terror, provocar medo, perturbação, choque, mórbida atração.

Por mais que exista uma fenda oculta no roteiro, uma mudança abrupta na linearidade da trama, são as incongruências visuais que causam maior espanto e perplexidade em A Estrada Perdida. Mais especificamente, quando os personagens se desprendem dos atores e ganham novos rostos, ou quando um mesmo ator se duplica em dois personagens diferentes. O tema recorrente na filmografia de Lynch envolve conflitos de identidade, e por isso seus personagens costumam apresentar um duplo, ou uma representação visual da separação física das múltiplas personalidades que habitam um mesmo corpo. Todos os seus personagens vivem em um conflito interno que os divide entre a pessoa que aparentam ser e a pessoa que realmente são. Em Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001), Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006), Veludo Azul (Blue Velvet, 2006) e na série Twin Peaks, essa marca registrada é reforçada numa sucessão de rostos que se misturam, pontos de virada abruptos durante a história, e lugares que ganham uma nova aparência e dimensão dependendo da hora do dia.

No caso de A Estrada Perdida, Lynch diz ter se inspirado em um caso real para contar a história do homem que é acusado de matar sua esposa e que pouco depois consegue se metamorfosear em outra pessoa e começar uma nova vida. Na época estava em evidência o famoso caso do esportista O.J. Simpson, acusado de matar a ex-esposa e um amigo durante um surto psicótico. A defesa alegou “fuga psicogênica”, um transtorno de ordem psicológica em que a pessoa assume inconscientemente uma nova identidade e comete atos dos quais não se lembra depois. Dependendo da variação de gravidade do distúrbio, a pessoa pode ficar anos, ou mesmo a vida toda vivendo nessa realidade paralela. O mesmo parece acontecer com Fred, que um dia é preso sob a acusação do assassinato de Renee. No corredor da morte, Fred inexplicavelmente se transforma em Pete Dayton (Balthazar Getty), um jovem que se envolve com Alice (Patricia Arquette), a mulher do poderoso mafioso Mr. Eddy (Robert Loggia).

Pete é o duplo de Fred, que no primeiro tempo do filme é um saxofonista que desconfia que sua esposa está tendo um caso com Dick Laurent (Robert Loggia). Durante uma transa, Fred sente que não consegue saciar o desejo de sua mulher, o que acaba confirmando todas suas suspeitas e inseguranças. Alguns dias depois Renee aparece morta e Fred já não se lembra direito do que fez na última noite. Agora como Pete, sua posição se reflete invertida no espelho, e ele passa de corno a amante, mantendo um caso com Alice – o duplo de Renee –, que agora é uma loura apaixonada por ele. Dick Laurent, que antes roubava Renee de Fred, agora é Mr. Eddy, o corno que perde Alice para Pete.

O fato de o duplo de Fred ser liberto da prisão, ficar com a garota e ainda ter a garra para enfrentar um perigoso mafioso nos leva a deduzir que tudo se passa na cabeça do personagem, onde as coisas ocorrem de acordo com seu desejo. Lynch insere nesse meio as influências cinematográficas mais marcantes de seu cinema, e faz dessa trama um filme noir autêntico, com direito a femmes fatales, um vilão inescrupuloso, o crime, a culpa, a moral dúbia dos personagens, e o contraste gráfico de luzes e sombras. Mas como tudo é personalizado de acordo com seus padrões estéticos, a luz não se deriva dos holofotes de um estúdio, mas sim aparece sutil e incidental por entre lâmpadas, abajures e neons. Lynch tem uma forma muito particular de lidar com a luz elétrica, um elemento-chave na sua filmografia que anuncia transformações e revela o lado dominante durante o embate entre o homem real e seu duplo (não à toa as mutações de Fred para Pete e de Pete para Fred ocorrem em meio a violentas tempestades luminosas).

A brincadeira com os tempos do filme também é válida, principalmente a partir do ponto em que tudo se fecha em um ciclo temporal inexplicável, sem prévio aviso dos pulos entre o passado, o presente e o futuro, permitindo que Lynch se aproveite dessa bagunça e cadencie em suas imagens a confusão mental de seu protagonista. Assim como em Cidade e Império dos Sonhos, sua lente parece estar empregada dentro do universo regido pelo inconsciente de algum personagem, de forma que todos os elementos ali presentes na ação ganham uma roupagem subjetiva de acordo com o desejo de tal personagem, ou quem sabe tudo não passe de uma fragmentação da personalidade deste projetada em algum evento ou pessoa real.

É um conceito muito abstrato, mas de imenso poder imagético, que teve poucos precedentes no cinema, como é o caso de A Hora do Lobo (Vargtimmen, 1968), de Ingmar Bergman. No terror psicológico do mestre sueco todos os estranhos habitantes da ilha se revelam parte de alguma faceta da personalidade do pintor atormentado, incluindo sua própria esposa, e logo fica fácil de deduzir que a ilha não passa de uma metáfora para seu isolamento psicológico e emocional. Em A Estrada Perdida, essa metáfora se reflete na estrada escura percorrida pelos personagens, cuja extensão e dimensão jamais podem ser cotadas, já que a luz dos faróis só nos permite enxergar uma fresta do asfalto – o resto é apenas uma escuridão que vez por outra cospe alguma assombração vinda de algum canto obscuro da mente de Fred, cada qual representando algum sentimento, seja a culpa pelo assassinato da esposa, seja seu ciúme doentio, seja sua incapacidade de lidar com o fracasso pessoal. Claro que, dentre todas, a figura mais assustadora é a do Homem Misterioso (Robert Blake), capaz de ocupar vários tempos e lugares simultaneamente dentro de toda aquela loucura arquitetada pelo inconsciente de Fred, e que talvez represente a culpa que o persegue, o cobra, o atormenta e o assombra aonde quer que ele vá.

No entanto, por trás de todo esse turbilhão sensorial proporcionado pelas imagens de A Estrada Perdida, há uma verdade muito simples, ou quem sabe um sentimento muito intenso. Toda essa coleção de absurdos orbita em torno de um único núcleo pulsante. Desse duelo entre as identidades ocupantes de uma mesma pessoa nasce também o sensível embate de sentimentos que sempre desponta cedo ou tarde nos filmes de Lynch. Ao amor descomedido de Fred se contrapõe o ódio de seu ciúme, cada qual predominante em uma de suas personalidades, assim como no caso de Diane (Naomi Watts) em Cidade dos Sonhos, que num ato de desespero acaba por encomendar a morte de sua amada. O amor é o catalisador dos sentimentos mais intensos dos personagens, sejam eles positivos ou negativos, e acaba por desencadear a tragédia, como sempre ocorre nos mais poderosos romances. Isso eleva A Estrada Perdida ao status de um melancólico filme de amor, ao mesmo tempo em que emprega o horror como filtro. No fim, ele praticamente os equivale, sobrepondo a ternura e a miséria, o carinho e a decepção, a doce expectativa e a cruel realidade projetadas em uma relação. Nos filmes de Lynch, por trás de toda a confusão, de todo os sonhos, de todos os surtos, de todos os sustos, há sempre como núcleo e eixo central a dor esmagadora de um coração partido.

Comentários (12)

Daniel Borges | quinta-feira, 12 de Março de 2015 - 23:39

olhem só estes créditos >>>>>>
http://www.artofthetitle.com/title/lost-highway/

Caio Henrique | sexta-feira, 13 de Março de 2015 - 00:15

Caralho,puta texto velho! Dos melhores do Lynch e da minha vida. E essa tua visão sobre o amor como uma constante e desencadeador de ações no universo do Lynch meio que explodiu minha mente cara. Nunca tinha visto por esse lado. Parabéns mais uma vez meu caro!

Diego Henrique Silveira Damaso | sexta-feira, 13 de Março de 2015 - 01:34

Esse paralelo entre A Hora do Lobo e A Estrada Perdida, assim como o amor sendo uma constante lynchiana foram sensacionais. Mas ainda prefiro Cidade dos Sonhos (tanto o filme quanto sua crítica, haha).

Gustavo Antocheski | segunda-feira, 16 de Março de 2015 - 23:33

Um dos meus diretores favoritos. Lynch precisa fazer um novo filme.

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