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Críticas

Cineplayers

Um documentário de expectativas

8,0

Em dado momento de Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, o diretor Marcelo Gomes (responsável por um dos grandes filmes nacionais do início do século, Cinema Aspirinas e Urubus) se interfere mais que indiretamente na narrativa: ao filmar o movimento incessante de um par de mãos trabalhando numa máquina de costura, Gomes surge com sua voz fora do quadro, elimina o som ensurdecedor da máquina e desabafa sobre a ansiedade que aquela repetição de movimentos e de sonoridade trabalhista lhe causa, lhe incomoda. Uma música suave é inserida no lugar, numa clara atitude do cineasta em buscar seu próprio alívio sobre a imagem que filma.

Na maior parte do tempo, Gomes sai investigando com sua câmera o cotidiano dos habitantes de Toritama, cidadezinha de Pernambuco que é tida como a capital do jeans no Brasil, correspondendo cerca de 20% da produção nacional por ano. Para o diretor, os habitantes falam sobre trabalho, sobre sua produção, com uma visível satisfação em relação aquela vida, onde cada um trabalha pra si, mesmo acordando às 5h da manhã e retornando para suas casas às 23h da noite, somente para retornar à mesma rotina no dia seguinte. Como um oriundo da cidade, Gomes se dá a liberdade de se tornar um personagem e questionar a auto-escravização e os ideais capitalistas de uma cidade que já não lhe parece reconhecível.

Em narrativa do documentário, os habitantes de Toritama expõem, num misto de alegria e timidez, sobre como o trabalho constante, sem limite de tempo, de ócio inexistente, lhe deixam felizes e completos por terem o que fazer, o que produzir, por terem uma forma de garantir suas independências financeiras sem dependerem da contratação de grandes empresas. Numa cena, uma senhora afirma que em Toritama, você só não trabalha se não quiser. Para o cineasta, é essa agressividade massiva sua principal muleta narrativa, seu objeto de estudo, de análise, mas também de contemplação, ao mesmo tempo em que um clímax muito específico é trabalho: uma vez por ano, a cidade é abandonada pelos habitantes que correm para as praias na época das festas de carnaval, chegando ao ponto de venderem objetos pessoais como televisões e geladeiras para terem condições de aproveitar as festividade.

Num olhar que transita muito bem a intimidade com uma distância respeitosa (a câmera se esforça para ser o mais ampla possível na captura das atividades), há um par de figuras curiosas passeando pela narrativa do documentário que mostram, de maneira até mesmo tocante, a mentalidade sobre trabalho e trabalhismo na qual Toritama se construiu. Um homem é modelo vivo de sua própria linha de roupas confeccionadas com jeans. Na calçada, um senhor idoso exibe com orgulho a limpeza que acabou de finalizar num jeans, atividade igualmente comum entre aqueles que não se envolvem na confecção direta. Num small shopping, um vendedor fala com visível paixão sobre o quanto gosta de lidar com os clientes que compram esse material. É nessa exploração que Gomes não economiza na exposição de sua frustração por pessoas que encontraram sua felicidade no trabalho massivo e imparável.

Há um conflito entre a imagem romântica que o cineasta manteve após abandonar o Agreste e o choque com a realidade de pessoas que não tiveram sua educação convencional, e encontraram no trabalho sua razão de existir. Ao chegar no momento de partida dos habitantes para as praias, onde querem usufruir da alegria do carnaval, Gomes se afasta e não segue os segue, mas lhes pede que filmem alguns de seus momentos para que esse material se torne parte da narrativa. E, não surpreendentemente, esse momento passa rápido. Logo, os habitantes estão de volta a Toritama, confeccionando jeans e buscando sua autonomia monetária, satisfeitos com aquela rotina, e contando os dias para o próximo carnaval.

Ao mesmo tempo em que Gomes constrói seus questionamentos, há inteligência por parte do cineasta em não impor seus ideais tão comuns da cidade grande sobre os habitantes, o que faz com que seus compartilhamentos sobre auto-escravidão e dilatação do tempo se tornem ainda mais particulares para nós, espectadores. A inatividade não faz parte do vocabulário de Toritama. E é nesta idéia, nessa identidade cultural tão própria, que a cidade, no fim das contas, encontra seus motivos para se manter viva, sorrindo e produzindo.

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