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Críticas

Cineplayers

Escrito a oito mãos, filme é bela obra do cinema italiano.

6,0

Estamos Bem Mesmo Sem Você marca a estréia na direção do ator Kim Rossi Stuart, mais conhecido dos brasileiros pelo filme As Chaves de Casa, de 1994. Neste belo trabalho de Gianni Amelio, Stuart interpreta um pai que, incapaz de lidar com a deficiência física de seu filho, livra-se dele no nascimento. Agora, ao migrar para trás das câmeras, ele volta a abordar o tema do abandono familiar, mas sob uma perspectiva diferente. Ao invés de levantar a questão da culpa do progenitor ausente (como em As Chaves de Casa), Stuart prefere analisar as conseqüências que o ato traz às crianças, invariavelmente o elemento mais prejudicado em confiltos desta espécie.

Em Estamos Bem Mesmo Sem Você, Stuart é Renato, pai de Tommi (Alessandro Morace) e Viola (Marta Nobili). Os três vivem no último andar de um pequeno apartamento. O pai é operador de câmera. Trabalha por conta própria. Vê-se que saúde financeira da família não é das melhores.

Logo percebemos que naquela casa a figura da mãe é ausente. Em conversas entre Renato e seus amigos, sabemos que ela já abandonou o lar algumas vezes, sem deixar pra trás qualquer explicação. O pai é obrigado a conciliar as duas funções. Educa seus filhos alternando momentos de ternura (quando dorme com ambos em sua cama) com alguns mais ríspidos (ao exigir que uma casca de banana seja levada ao lixo imediatamente ou quando censura severamente seu filho por este ter xingado sua irmã).

As circunstâncias da vida forçam os filhos a se tornarem independentes antes do tempo. No início do filme, acompanhamos o cotidiano de Tommy. Seu dia se divide entre as atividades regulares no colégio e na escola de natação (que detesta). O garoto não é de muitas palavras. Seu olhar revela uma certa melancolia. Em suas expressões, vê-se ceticismo (ao saber que seu pai se tornou free-lancer, em vez de se alegrar, sua primeira preocupação é saber se a mensalidade da natação foi paga). Nas horas vagas, Tommy sobe ao telhado do prédio, onde passa os poucos momentos de efetiva alegria.

A irmã Viola, por sua vez, já começa a entrar numa fase adolescente, em que surge um maior interesse pelo sexo oposto (seja com um possível namoradinho virtual com tecla durante horas a fio, seja em brincadeiras com o irmão) e o início da descoberta do próprio corpo (ao levantar a toalha e mostrar suas pernas ainda de menina para Tommy).

A vida vai seguindo seu curso até que a mãe (Barbora Bobulova), volta pedindo perdão. Stefania é seu nome. A cena de seu retorno é um achado. Ela surge no alto das escadas, atrás do elevador, escondida no meio das sombras, quase como um fantasma. Em frente à porta da casa, os filhos permanecem paralisados. A primeira a ter uma reação é Viola. Ela corre em direção à mãe  e a abraça. Tommy, desconfiado por natureza (ou talvez ressentido?), se resguarda na defensiva. Apenas num segundo momento e mesmo assim sem demonstrar muita espontaneidade, deixa-se envolver pela acolhida materna.

A reentrada da mãe naquele pequeno núcleo volta a testar novamente a maturidade das crianças. Elas são obrigadas a ver a ríspida discussão entre os pais e a ouvir os reais motivos pelos quais a mãe os abandonou. Ao final, os meninos são convocados para opinar se a aceitam ou não de volta. “Eu os chamei aqui porque vocês já são grandes o suficientes para entender a situação”. Será mesmo? Será que Tommy e Viola estão realmente prontos a entrar no mundo adulto, de forma tão violenta? Será que Renato usou o momento para que eles aprendessem a realidade da vida ou sua intenção era tão somente humilhar a esposa? Será que o pai avaliou qual a conseqüência que aquela atitude poderia trazer para os anos seguintes de seus filhos? Por outro lado, será que, diante das circunstancias, devemos julgar a conduta de Renato? Não teria ele agido, certo ou errado, pelo bem das crianças?

Posta a votação, Viola reage instantaneamente, pedindo a volta da mãe. Tommy, por sua vez, anui sem qualquer ênfase. Mais tarde, sozinho com o pai na mesa da cozinha, ele desfere: “De todo o modo, ela vai embora de novo”. O pai o observa surpreso, a frase seca saindo da boca do filho. Renato percebe que, em certo sentido, Tommy já é mais adulto que ele próprio.

A mis-en-scene de Kim Rossi Stuart é simples e fluida. Praticamente todas as seqüências são filmadas à altura das crianças, já que é do ponto de vista delas que a história é contada. A câmera é colocada a serviço da história, sem maiores firulas técnicas (a não ser, talvez, a tomada em câmera subjetiva da prova decisiva de natação). Na cena em que Stefania aguarda a chegada de Renato para pedir que a aceite de volta, por exemplo, Stuart mantém o quadro estático, fixo na atriz e no garoto ao seu lado. Enquanto sua expressão de ansiedade vai aumentando, ouvimos o pai entrar na casa, o volume da sua voz se elevando, os passos se aproximando. A visão dele ingressando no quarto nos é dada pela voz de Tommy, dizendo um singelo “Oi, pai”. Stuart recusa o aguardado contracampo até o último instante, mantendo a expressão de tensão da mãe por mais alguns segundos na tela. O efeito é dos mais felizes.

O roteiro, escrito a oito (!) mãos, também acerta ao encarar a história como um pequeno recorte da vida daquelas pessoas e que, por isso mesmo, não tem propriamente um fim. Muitos dos conflitos abertos ao longo do filme, não são fechados de forma deliberada. Os problemas financeiros não desaparecem como um passe de mágica, o início de uma atração de Tommy por uma colega de classe permanece em suspenso e assim por diante. That´s life!

Como ator de formação, Stuart revela um natural talento na direção de seu elenco. O grande destaque vai para Alessandro Morace. Seu Tommy se equilibra entre um paradoxo de menino que ainda não se transformou em homem e homem na pele de um menino. Seu gestual demonstra timidez e insegurança. Seu silêncio, ceticismo e uma certa desilusão. Seu sorriso de canto de boca, maturidade. Há tempos não via uma interpretação infantil tão rica em nuances como a de Morace.

O título original de Estamos Bem Mesmo Sem Você (Anche Libero Va Bene), de difícil tradução para o português, é tirado de uma das últimas frases do filme. Numa conversa entre pai e filho, este diz que sua posição preferida para jogar futebol é a de meio-de-campo. Ao ouvir a resposta do pai, que optava pela de líbero, o garoto responde: “A de líbero também é boa”. O sentido dúbio e aberto é o fecho mais adequado para esta bela obra do cinema italiano.

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