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Escravos do Desejo

(Of Human Bondage, 1934)
7,1
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um momento do melodrama

7,5

Há uma articulação recorrente da Hollywood clássica relativa à tipicidade de seus filme e narrativas. A busca por uma reiteração do que já foi visto é em parte o que explica a força do sistema de gêneros fílmicos nesse período, a reincidência de um conjunto de conclusões morais como solução para os conflitos da trama, e a frequência com que alguns atores e atrizes interpretam, em vários filmes, uma mesma qualidade de personagens. As origens dessas tipicidades não são facilmente localizadas, porque elas se articulam em rede, sendo influenciadas por outras mídias, uma variedade de princípios ideológicos da indústria e por interesses produtivos diversos. Mesmo assim, é possível localizar algumas primeiras aparições de personagens, gêneros e clichês que hoje integram o cânone da cultura cinematográfica. E podemos vislumbrar algumas delas no filme Escravos do Desejo (Of Human Bondage, 1934).

O personagem principal deste filme é Philip Carey, interpretado por Leslie Howard, que tem frustrada a sua expectativa de ser bem-sucedido como pintor em Paris e então se muda de volta para Londres. Sua Paris aparece nos terraços de cafés e pela janela de seu pequeno apartamento e atelier. Essa Paris é “típica”, a imagem de abertura do filme é da Torre Eiffel, em um plano panorâmico que termina na avenida onde encontramos o personagem dentro de um carro, com a cidade por trás dele. Esse artista, embora possa se dizer inspirado pela vista da cidade que se apresenta na janela de seu apartamento, parece circular apenas por seus interiores. Isso não é muito diferente do que acontece nas encenações da Europa em outros filmes de gênero da mesma época, como a Paris que aparece nas primeiras cenas de Vamos à América (Ruggles of Red Gap, 1935). Os personagens desses filmes são burgueses assimilados pela sociedade. E a classe é definitivamente uma orientação do personagem que age sobre os espaços encenados, sobre sua redução e interioridade. Mas não é a única.

Podemos pensar a recorrência de uma interiorização nos melodramas da década de 1930 que se dá tanto por uma conjuntura de produção (dado que os filmes são geralmente filmados em interiores) e pela classe dos personagens, quanto pela identificação do melodrama com temáticas pretensamente tidas como “femininas”. O próprio filme As Quatro Irmãs (1933), em que o lugar das mulheres que protagonizam o filme é de uma domesticidade que as distingue dos homens que partiram, é um exemplo evidente disso. O reconhecimento de uma masculinidade militar e, assim, exteriorizada, se torna uma reiteração dessa distinção – de classe tanto quanto de gênero.

Escravos do Desejo se torna interessante, no entanto, ao inverter essa orientação do que se entenderia como masculino e feminino na sua encenação dos lugares. É um protagonista homem que recorre à domesticidade, que percorre espaços interiorizados. Isso se dá em parte porque o personagem é reconhecidamente um homem burguês. Mas, além disso, o personagem tem também uma deficiência em um de seus pés, o que impede, no contexto do filme, que ele seja reconhecido por uma masculinidade militarizada, por exemplo. A interiorização do filme, portanto, é orientada também pela desestabilização da representação de gênero do melodrama. Isso é enfatizado por Mildred, a personagem de Bette Davis no filme, que se opõe a essa interiorização ao mesmo tempo que coloca em questão o reconhecimento de masculinidade do personagem de Howard.

Se o mundo fílmico do melodrama, que aqui é o mundo de Philip Carey, um estudante de medicina burguês, é um mundo interiorizado, então é um mundo inadequado a Mildred, uma personagem que desestabiliza (tanto quanto ou mais que Philip) a avaliação do que é ser mulher que está articulada no melodrama. Então a personagem, uma perversão a que o filme pretende nos opor, vai aos poucos demonstrando sintomas de acentuada claustrofobia, que atinge seu ápice na cena em que Howard a confronta. Nela, Mildred recua de Howard, descreve sua repulsa por ele em gestos ansiosos e xingamentos capacitistas e segue para de fato destruir esses espaço de domesticidade na cena seguinte.

As vilãs do melodrama podem frequentemente agir no sentido de romper com esse espaço de domesticidade, mas o que estamos vendo aqui não é simplesmente uma vilã do melodrama, é um novo “tipo” do cinema hollwoodiano, que toma emprestado algumas coisas dos clichês já estabelecidos para construir algo novo. É a “megera” nunca domada de Bette Davis, que se consolida no melodrama até os anos 1960 e que segue adiante influenciando atrizes como Elizabeth Taylor, Faye Dunaway, Jessica Lange e Glenn Close. Com sua Mildred, Davis reformula o gênero do melodrama e a sua expectativa de feminilidade e masculinidade. O “tipo” que interpreta não nasceu aqui, ele é o produto de vários agentes criativos, ideológicos e morais de Hollywood que terminaram formulando essa personagem de um certo modo – e não devemos diminuir o exercício autoral da própria Davis, que lutou pelo papel –, mas enquanto Mildred se debate contra Howard, sua gargalhada histriônica rasgando a imagem, podemos ter a sensação de assistir à aurora de uma nova encenação do gênero.

Texto integrante da série Vestígios da Era de Ouro

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