Marcelo Gomes é um cineasta brasileiro que vem realizando obras contundentes que trazem facetas da dureza do povo brasileiro – especialmente o nordestino – e seus deslocamentos sociais, emocionais e culturais. Foi assim em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), através de uma viagem temporal; e em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), o qual dirigiu juntamente com Karim Ainouz, trabalhando com recordações durante uma longa viagem. Agora ele concentra numa médica residente de um hospital em Recife. Verônica é uma mulher comum com questionamentos particulares. Passa os dias atendendo filas de pessoas com queixas de ordem mental. Alguns relatam dores de cabeça fortíssimas, enquanto outros trazem problemas mais severos, com alguns catatônicos, deprimidos e demenciados. Ela percebe os dias longos lhe enxerem com a dor alheia. Ainda convive com a doença progressiva do pai. No meio de tudo, busca felicidade, igual a todos os outros. Não encontra. Vê no sexo um alívio, um escape. Tem no cotidiano a amargura e a dor do outro e a incerteza de si própria.
A cena de abertura mostra Verônica na praia, rolando nua sobre a areia junto a outras pessoas. Homens e mulheres se divertem sexualmente sob o sol de Recife. O sexo dita o ritmo da satisfação, sorriso de prazer momentâneo encontrado em curtos bons momentos que ela dispõe do prazer carnal. Em um ato revela seu gozo, conta sobre o beijo e o que este lhe proporciona. Acompanhamos essa personagem se valendo de perguntas próprias, consultando a consciência e estirpando seu ego frente a tabus. É um filme de si, de âmago; estamos dentro de sua cabeça e acompanhamos intimamente seus pensamentos, suas escolhas e ações e, induzidos, percebemos os acontecimentos segundo suas expectativas para com todas elas.
Poderia se pensar, logicamente, o que mantém aquela inquietude e infelicidade já que, para os espectadores, a protagonista parece vitoriosa devido às circunstâncias. Provinda da classe média, teve as oportunidades que a geração dos últimos 10 anos conquistou. O acesso à faculdade como exemplo. No longa, Verônica encontra-se formada em medicina, empregada, abarrotada de amigos e de amores. Isso tudo, no entanto, não lhe basta, parece que algo obscuro está ausente. Dar conta de tudo é um desafio inoportuno que não fez parte de seu crescimento e lhe parece assustador. Desafiada, sente que falha. Que cena é aquela em que um de seus pacientes, num acesso de fúria, cospe em seu rosto. Não é em seu rosto que ele cuspiu, mas no sistema que a engloba, representado por sua face diante a miséria daqueles que não tiveram a mesma chance de chegar aonde ela chegou.
Marcelo Gomes é preciso ao demonstrar a sensibilidade de sua protagonista frente aos eventos cotidianos, exibindo com sutilezas acontecimentos comuns, longe de algo extraordinário, mantendo um ritmo cadenciado, ritmo de cotidiano, sem qualquer algo monumental para eclodir. Decepção para alguns públicos desacostumados a narrativas sensoriais. Também é interessante perceber as relações de Verônica com outros a sua volta, especialmente com os homens. Seu namorado, vivido por João Miguel, está presente em sua vida como conforto, algo que parece deixá-la em dúvida, já que está sempre rememorando seu futuro e o custo daquela relação. Parece sempre mergulhar em dúvidas e boiar sobre elas, tal como na cena no mar, quando se deixa levar pela calmaria das águas mornas das piscinas naturais de Recife.
Concentrado numa personagem feminina com ambições e racionalizações de mulher, o filme se encarrega de debater seu papel sem vulgarizar. Aí entram as cenas de sexo, de nudez sem culpa ou vergonha, demonstrando conquistas pessoais, contrariando preconceitos de quem vê a mulher enclausurada, subjugada a figura masculina, impossibilitada de se revelar e fazer o que bem entender. Num padrão social, diante o que se espera da mulher, Verônica corta as amarras. O filme não abandona esse caráter para se entregar a resultados, mas se mantém num mesmo norte, mantendo-se aberto e irresoluto.
Hermilia Guedes dá grande vitalidade a sua personagem, variando de manias a desolação, crescendo enquanto profissional, ouvindo seus pacientes durante as consultas, algo que, em dado momento, lhe traz consequências no hospital. Seu chefe lhe diz: “você não conversa com o paciente, você examina o paciente”. Seu método de trabalho vai contra alguns princípios arcaicos de mandatários, aparecendo como uma crítica a indisposição de alguns médicos em ouvir de fato seus pacientes. Isso aparece também como metáfora de sua vida diária quando se ouve divagando. Ela não tem quem lhe ouça. É preciso escutar, mas nem todos estão ouvindo.
Bom texto, Marcelo. Parabéns!
Mas pessoal, cadê a crítica de Além da Escuridão - Star Trek? O filme foi um dos principais lançamentos da temporada de blockbusters e já ta no cinema brasileiro há quase 2 semanas (1 mês se contar as pré-estréias nacionais), ta faltando a crítica dele aqui
Ótima crítica!