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Críticas

Cineplayers

Radiografia do nosso tempo de causar inveja a ursos e palmas.

8,0
Ao redor do globo temos visto cineastas e festivais cederem a pressão da crise econômica mundial e abordarem temas de relevância social com cada vez mais agudeza e urgência. Se antes Ken Loach e os irmãos Dardennes era os porta-vozes a terem primazia ao promover um cinema de tintas humanistas com fortes tendências a ocupar um lugar no coração dos esquerdistas, há dois anos os grandes certames de competição europeus tem assinado embaixo de perfis políticos e propostas que gerem debate de acordo com o rumo grave que os países tem tratado os imigrantes, a sociedade como um todo, do esfacelamento da máquina estatal e da fraternidade que pode nascer do meio dos conflitos. Títulos como Fogo no Mar de Francesco Rosi, Dheepan de Jacques Audiard, O Valor de um Homem de Stephane Brize, Eu, Daniel Blake do já citado Loach e o mais recente de todos O Outro Lado da Esperança de Aki Kaurismaki, saíram de Berlim e Cannes premiados, consagrados e acima de tudo, muito debatidos. No Brasil, Eliane Caffe observou o movimento aqui de São Paulo e entrega agora um de seus filmes mais celebrados, Era o Hotel Cambridge

A sensibilidade de Eliane molda um produto de acesso lento e gradativo, que não se revela de cara mas que desdobra um lugar de impacto que demora a se fazer presente, mas que deixa sua marca. Eliane aproveita um elenco já familiarizado com os conflitos de ocupação paulistas por se tratarem de reais participantes de ações no passado para situar seu docudrama sobre a líder de um grupo de ocupação e os moradores do prédio onde eles provisoriamente moram. Junto aos profissionais José Dumont e Suely Franco, esse improvável grupo de pessoas de diferentes origens (estrangeiros refugiados, nordestinos, paulistas, artistas, desvalidos brasileiros ou não) vivem no prédio do título, o Hotel Cambridge, antes espaço de referência e hoje, com o abandono, se tornou espaço invadido e ocupado. A primeira metade do filme se presta a rastrear a vida relativamente comum de todos eles, unidos pela militância, pelo abandono do estado e pela esperança, mas que são indivíduos muito distintos, diz o filme. Durante essa primeira parte, a naturalidade da ambientação e dos personagens andam de mãos dadas com o clichê e o lugar comum a tantos filmes corais, de alcance maior. Até quando tenta construir poesia, dança e artes plásticas, o filme escorrega em situações onde o artificialismo se mostra aqui e ali, equilibrando esse jogo cênico entre acertos e erros. Ainda assim, já observamos a qualidade do olhar de Eliane para o material escolhido e esculpido cena a cena. 

A partir de uma sequência espetacular de uma nova invasão a um diferente prédio em cena, e que é desde já uma das melhores do ano, as amarras da ficção se borram e desmancham, e 'Era o Hotel Cambridge' entra numa espiral ascendente que não cai mais. Trabalhando com um tensa câmera na mão a partir desse momento e aí investindo positivamente em viés documental, Eliane não apenas transforma seu filme narrativamente, como arrebata nosso olhar e nossa emoção, chegando no ponto onde provavelmente queria desde o início: acessar nossa empatia e nosso ímpeto social. O faz da maneira mais acertada possível, construindo imageticamente novos ângulos em seu filme e dando importância ao mesmo para além do socialmente válido; Eliane faz a partir da metade excelente Cinema, e é isso que coloca seu projeto em outro patamar, longe da burocracia e da estagnação que temos visto em tantos filmes premiados por aí. 

Se tirando as divisas que separam (ainda separam?) documentário e ficção Eliane Caffe não inova ou radicaliza, é com seu talento como realizadora que ela vai se diferenciar do momento cinematográfico atual no que concerne esse recorte social no qual se debruçou. Se falta algo de fresco no seu formato, jamais falta vigor, rigor e energia bruta, mesmo em sua primeira metade. Com a virada, o filme meio descontinuado do início dá lugar a um produto que grita virulência e impacto, tanto social quanto principalmente fílmico, com montagem espetacular de ... e uma lente de ... que desliza por corredores e apartamentos, claros e escuros, tudo separado ou tudo junto, conseguindo criar momentos de extrema beleza plástica em meio ao caos e a explosiva cacofonia visual e sonora que o filme cria, que se encaminha para um desfecho singular. 

Diante da recuperação do filme, que vai de um polo a outro em matéria de identidade, Eliane continua sua impagável trajetória como realizadora, que inclui os belos Kenoma e Narradores de Javé, e parte para um confronto direto com o conformismo estético e a palidez narrativa que atinge a grande maioria dos filmes que, na ânsia de reconhecer sua própria voz de protesto, esquecem de conceber cinema; Eliane na metade do jogo estabelece um nível de excelência que tem faltado ao seu grupo de colegas europeus na hora de estabelecer suas mensagens, e mostra que equiparado a qualquer grito de alerta, tem de vir o rugido de sua realização. 

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