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Críticas

Cineplayers

Cantet ganha seu espaço como crítico das instituições modernas e pensador social.

9,0

Qual o papel do educador na sociedade? Como trabalhar e conviver com o diferente? Como combater a exclusão e o xenofobismo? Em que resulta o convívio forçado entre culturas distintas? Como agir de forma ética na profissão? Como lidar com jogos de poder e conflito? Qual o limite da liberdade? A escola consegue cumprir seu papel social?

Fazer o espectador pensar é a urgência que Entre os Muros da Escola traz consigo. O bombardeio de perguntas torna-se inevitável na cabeça de quem assiste a um filme com tamanha riqueza semântica. O diretor Laurent Cantet baseou-se no livro homônimo de François Bégaudeau, que vive o professor da turma de sétima série retratada no longa. A relação entre professor e alunos do ensino fundamental de um colégio francês expõe o que é a juventude e os desafios do ensino atualmente, mas, além disso, funciona como um pequeno espelho da miscigenação cultural e racial que acontece na França.

Na época em que o atual presidente francês, Nicolas Sarkozy, era ministro do interior do país, fortes conflitos ocorreram na periferia francesa por conta do preconceito contra os imigrantes argelinos, o que gerou focos de tensão pelo embate violento que se instaurou na cidade. Assim, não é de se estranhar o clima de hostilidade que acompanha os alunos da escola Dolto, obrigados a conviver oito horas por dia com pessoas de culturas diferentes em uma sala de aula.

Cantet exprime uma visão brutalmente realista da decadência escolar como espaço democrático, fenômeno não-exclusivo da sociedade francesa e muito semelhante à realidade brasileira tanto nas instituições públicas como privadas. O colégio e os ambientes acadêmicos em geral perdem o caráter de espaço para debate de ideias e de democracia intelectual para se tornar o primeiro espaço que liberta os filhos do controle de seus responsáveis. Por isso não é estranho ver o professor François conversar com os pais de seus alunos e ouvir relatos do bom comportamento que eles apresentam nas suas casas e que, por vezes, não condizem com as atitudes em sala. A escola é vista como local de confinamento social no qual as regras coletivas podem ser testadas.

Com a miscigenação cultural e racial que a França atravessa, o professor de ensino fundamental se vê diante da difícil missão de “colonizar” seus alunos para a realidade do país, partindo do bê-á-bá da alfabetização, ensinando o básico do idioma oficial do país. Inevitavelmente, ocorre o nivelamento por baixo do conhecimento, o que ocasiona na estagnação da qualidade do ensino. Assim, os muros do título do filme vão muito além dos da escola (como sugere o título em português). São as paredes socialmente impostas que dividem as pessoas e as segregam, e hoje a queda desses obstáculos microrregionais acontece de forma acelerada, causando efeitos também aos invisíveis muros macrorregionais.

Em meio a esse caos organizacional, qual é o papel do educador? O professor apenas como detentor do conhecimento parece não se encaixar mais nos modelos escolares atuais. O papel de educador, estendendo a função do docente de transmissor do saber científico para alguém que ensinará valores, é a tônica do sistema pedagógico do novo século. François é um professor humano, que sabe exercer o papel de educador, buscando uma aproximação com seus alunos que não para nos livros escolares. Mas, quando confrontado, talvez imbuído de uma áurea de superioridade típica das elites intelectual e financeira, expõe a sua visão ao mesmo tempo solidária e cercada de preconceitos da qual não consegue se livrar. E as suas referências à Áustria são uma prova disso.

Permeado por perguntas cruciais, e inteligentemente desinteressado em fornecer conclusões acerca de um tema complexo, Entre os Muros da Escola vai afundo no problema crônico do modelo escolar e dos conflitos sociais ocasionados pelos choques de cultura. O filme escapa do lugar-comum, percorrendo caminhos naturais, sem optar pelo dramático, pela redenção, pela mensagem de esperança. É uma representação crua de uma realidade dura.

O diretor realizou um trabalho quase experimental em seu filme. A história não atravessa os muros escolares, não tem interesse em conhecer seus personagens fora do ambiente de estudo, foco central da trama. Cantet impôs à ficção um tom de realidade documental. Alcançou isso pela opção de utilizar atores não-profissionais que de fato pertencem à sétima série de uma escola francesa. Para aumentar a veracidade do longa, permitiu aos atores não seguir o que delineava o roteiro, e eles agiam de acordo com indicações do cineasta e por intuições próprias de como essa realidade deveria ser retratada no cinema.

Entre os Muros da Escola opta por observar mais de perto os alunos e o impacto do processo educacional neles, do que na dificuldade do professor – mas sem deixar de abordar esse aspecto. Busca ir fundo na ferida, partindo de suas causas, não de seus efeitos, para incitar perguntas e convidar a plateia a um debate que não pode mais ser adiado sobre o assunto. O desgaste dos docentes decorrente do desinteresse dos alunos gera falta de interesse daqueles que deveriam zelar pelo conhecimento, criando um perigoso círculo vicioso.

Muito do pensamento do filósofo Michel Foucault, crítico de instituições sociais como a escola, pode ser visto no filme. O pensador aborda questões como o caráter messiânico da educação, a escola como espaço para adestrar o pensamento intelectual e o intercâmbio de conhecimento que ocorre na relação professor/aluno. Foucault enxerga a escola como espaço de punição. A escola controla as massas e as ensina desde cedo a ser o produto de uma sociedade laboral. 

Reflexivo como não poderia deixar de ser ao abordar um tema delicado como a educação e o papel da escola na formação de seres humanos, Entre os Muros da Escola está longe do simplismo e é eficiente em sua proposta de discutir a organização social contemporânea. Por sua importância e qualidade artística levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e recebeu a merecida indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Uma bela aula.

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