Um filme que toca em temas que as pessoas mais normais jamais ousariam tocar.
Há uma citação explícita de Ensaio de um Crime, o grande filme do espanhol Luis Buñuel, em Carne Trêmula, de seu conterrâneo Pedro Almodóvar. No entanto, Almodóvar já havia homenageado seu mestre e esta obra em outro filme, Matador, do qual sugou a trama para fazer um de seus mais fortes trabalhos. São dois ótimos filmes com a mesma temática: a mistura de tesão e morte.
Ensaio de um Crime é de 1955 e Buñuel o fez no México. O autor do livro em que se baseou a obra, Eduardo Ugarte, ficou tão horrorizado com o resultado final que foi se queixar com o sindicato dos roteiristas. Faz sentido: conta a história de um homem de posses que, traumatizado com a morte que presenciou da sua ama, desenvolve uma neurose que o faz elaborar planos diabólicos para matar todas as suas amantes futuras.
No início do filme, ele tenta matar a freira que cuidava dele num hospital psiquiátrico correndo atrás dela com uma navalha. A pobre religiosa, desesperada, tenta fugir pelo elevador e acaba se espatifando no fundo do poço, pois não percebera que o mesmo não se encontrava no andar. Em vão Archibaldo, o protagonista, tenta atrair para si a culpa pela morte. Ninguém acredita nele.
Começa então um flashback narrando as tentativas de assassinato de Archibaldo, que nunca dão certo, apesar de as mulheres terminarem mortas de maneira estapafúrdia. Sem conseguir realizar seu intento macabro, Archibaldo compra um manequim de cera e o torra no aquecedor de sua casa, tendo alguns momentos de alívio vendo o protótipo de mulher derreter, numa cena que emula a masturbação de maneira ao mesmo tempo engraçadíssima e diabólica.
O filme não é apenas uma coleção de neuroses, exploração de instintos básicos deprimentes ou dos pensamentos abjetos de seu personagem principal: é, antes de tudo, tudo isso e muito mais do próprio diretor, esse sim dono de uma mente doentia e desequilibrada, que usou o surrealismo para dar vazão às suas pulsões mais degradantes e obscuras, tornando-o um dos maiores cineastas de todos os tempos. Ensaio de um Crime é um dos pontos altos de sua carreira.
Só uma informação: a atriz Miroslava Stern, personagem e modelo para o boneco derretido, suicidou-se logo após terminada as filmagens. Os motivos que a levaram ao ato não têm nenhuma relação com o filme, mas a notícia provocou um mal estar enorme.
Mais de 30 anos depois, Almodóvar, gay assumido (Buñuel, homofóbico ferrenho, detestaria a homenagem), refez a trama na história de um professor de toureadores que só chega ao êxtase ao matar as suas amantes na hora do sexo. Um de seus discípulos, interpretado pelo jovem e, naquela época, com algum traço de talento, Antonio Banderas, assume os crimes e fica popular, com fama de machão, na cidade. Quem abre o filme é Assumpta Serna, cafona até doer em seus vestidos de espanhola, que também sofre do mesmo mal e mata seus amantes quando eles estão para ter prazer dentro dela: tira um enorme alfinete dos cabelos e os espeta pelas costas. Ambos, amantes assassinos, que confundem as pulsões de morte e sexo, encontram-se nas ruas de Madrid e partem para a derradeira noite fatal de ambos – ou de apenas um deles. Quem sobreviverá?
O supercrítico americano Harold Bloom diz que uma das formas de se reconhecer uma obra-prima são suas diversas releituras que recebe ao longo dos anos. Quanto mais extravagantes e distantes do original, ou seja, “erradas” ou mal entendidas, mais fundamental é essa obra para a história da arte, pois mostra que fundou uma tradição. Com Ensaio de um Crime e Matador têm-se uma legítima linhagem, a dos grandes filmes; de grandes diretores que se debruçaram sobre temas sórdidos que a maioria dos outros artistas e espectadores nem sequer ousam tocar.
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