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Críticas

Cineplayers

Documento da diversidade.

9,0
Wiseman é um nome essencial aos adeptos do documentário. Seu cinema direto observa e enfoca desde o final dos anos sessenta os Estados Unidos em constante transformação. Com um cinema em sua visão mais “pessoal” que documentários com mais apelo, Wiseman já afirmou em entrevistas que busca distanciar-se da objetividade ideológica e ressaltar a experiência que teve fazendo o filme, as impressões que teve e como extrair um filme disso. Ao contrário do documentarista que conclama seu estilo de filmagem ser a representação da realidade, Wiseman contesta, diz que todos os aspectos do documentário - o que é enquadrado, como é enquadrado, como é organizado na montagem, envolve escolha e guiar o olho de quem assiste para uma determinada direção.

Portanto, seus filmes sempre serão experiências viscerais, porque segundo a filosofia de seu diretor, são filmes mais “na cara” o possível, experiências avassaladoras e sem volta em um única proposta e ambiente, como o retrato da vida de internos de uma prisão manicomial, em Titicut Follies (1967); mostrou o dia típico de estudantes em High School (1968) e o de um hospital em Hospital (1970). Ou o cotidiano e as apresentações do cabaré Crazy Horse (2011) em Paris. E seus filmes também são com esse espírito direto até nos próprios títulos, como se dá para perceber: Ballet, Missile, Public Housing, Domestic Violence… E novamente o caso se repete no filme Em Jackson Heights (2015).

A nova empreitada do filme de Wiseman dá conta de um bairro inteiro de Nova York. Jackson Heights, no Queens, é um dos bairros com maior diversidade cultural do mundo - 167 línguas são faladas no bairro, onde nasceu a passeata por direitos LGBT Pride, onde famílias da América Latina, Oriente Médio e outros países que vieram tentar a sorte gerem negócios locais, onde muçulmanos podem praticar sua religião em uma mesquita… Um lugar, também, que é lentamente invadido por um mercado predatório, que pratica concorrência desleal fechando comércios locais para abrir grandes lojas franqueadas, o que pode pouco a pouco ameaçar a diversidade tão rica do local após outros locais famosos de Nova York perderem sua singularidade para tornarem-se lugares elitizados onde apenas gigantes podem coexistir.

Seguindo a filosofia “mosca na parede”, não há intervenção direta dos autores do filme no espaço diegético na obra: eles não perguntam, não interagem, apenas observam. As três horas e dez da obra veem reuniões dos organizadores do Pride e o seu ativismo no dia a dia em combate à homofobia em estabelecimentos comerciais; de famílias colombianas que cruzaram milhares de quilômetros a duras penas para conseguirem oportunidades e fazer uma vida nos Estados Unidos, enfrentando todo o drama de conseguir permanência no país - aí vemos tanto os imigrantes recém-chegados, aqueles cheios de traumáticas histórias sobre cruzar a fronteira entre EUA e México enfrentando golpes, perseguição e privações; e comerciantes de pequenos negócios que passam a ser ameaçados de perder seu local de trabalho para construírem megalojas no lugar; há também momentos com pessoas de diversos países que se preparam para aprender o idioma ou se capacitar profissionalmente e figuras mais antigas e tradicionais, como políticos e comerciantes mais antigos e intimamente ligados com a história do lugar.

Nisso, o filme tem longos diálogos, cheios de ponderações, protestos, climaxes, narrativas além quadro, além de longos silêncios, o dia a dia do do bairro, e cenas descritivas que atuam como divisores entre um foco do filme e outro, o que dá para depreender que Wiseman, ainda que raramente construa uma “dramaturgia” para seus documentários propriamente falando, não deixa de enfocar o drama. Não há uma técnica específica sendo utilizada para contar a via crucis; mas há drama, há a forma narrativa onde se expõe um conflito, onde metade da  misé-en-scene vem daqueles que contam suas versões de história, aqueles que a contestam contando outra, as ideias que divergem e confluem. Mostra-se o ambiente vivo - ruas, lojas, esquinas, bares, carros, seus planos mais descritivos sobre o que, onde fica e como se parece Jackson Heights, e logo então a exposição profunda e arrebatadora de seus conflitos, onde apenas pessoas falando longamente em planos-sequência mostram como o bairro que cada pessoa de lá mora pulsa vivo em sua composição multifacetada intimamente ligada com a história e formação do país.

O enfoque de Wiseman, apesar de sempre social, nunca deixou de ser igualmente pessoal, então sua câmera através das pessoas, nunca através de vozes fora de quadro, nunca são guiados. Essa recusa pela encenação e o abraço por extrair a força dos depoimentos, a força das pessoas em constante relação. Com quase cinco décadas de carreira, o cinema de Wiseman é igualmente uma instituição norte-americana, que refletiu tantos aspectos da vida do século vinte que seus registros são testemunhos vivos da história americana, como o cinema dos Irmãos Maysles e de Robert Kramer. São o que se pode chamar de pilares do cinema documentário dos Estados Unidos, e Em Jackson Heights é mais uma confirmação da excelência e importância de Wiseman como alguém que refletiu seu próprio tempo como poucos.

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