Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Pablo Trapero e a câmera que grita.

8,0

O olhar de Trapero sobre a Argentina torna-o um dos diretores mais singulares a surgirem na última década. Seu cinema lança atenção sobre pessoas realmente miseráveis, dia a dia lutando para sobreviver em meio a um contexto empobrecido, violento e desesperador.

Tentativa do diretor de retratar a periferia argentina e suas favelas – o que segundo o próprio artista faz com que o filme tenha mais parentesco com o cinema brasileiro do que com o próprio argentino, mais preocupado em retratar os problemas da classe média dos centros mais populosos –seu longa Elefante Branco, que abriu a mostra Um Certain Regard de Cannes em 2012, exibe a maturidade de um cinema que já impressionava por seu potencial em Do Outro Lado da Lei (El Bonarense, 2002) e Família Rodante (idem, 2004) e que atingiu sua maturidade em La Leonera (idem, 2008) e Abutres (Carancho, 2010).

Seu início confuso, pouco dialogado e pouco explicado, apresenta dois padres missionários, de diferentes origens, e tomados por desejos humanos e seculares, que trabalham junto a uma assistente social em uma das favelas de Buenos Aires. Os três juntos tentam trazer alguma dignidade às vidas que ajudam e – aí que mora o grande conflito – são frágeis e humanos demais para combater uma pirâmide tão grande e corrupta: a brutalidade da polícia, a ameaça do tráfico, a indiferença das altas esferas clericais e o imenso descaso do governo, que reprime toda e qualquer revolta que saia dali, mantendo aquela comunidade alienada, esfomeada e revoltada à margem de um sistema que não escolheram.

Descaso simbolizado de forma emblemática pela grande construção que fica no centro da favela, um hospital que jamais foi terminado e hoje é reduto de inúmeros jovens viciados em crack – o famoso “elefante branco” criado por governos populistas e demagogos, a construção imponente, porém sem utilidade. Nessa atmosfera criada por Trapero, os padres – que sempre são fotografados imersos em sombras, fumando muito e abandonando discursos e pregações formais para xingarem e lamentarem em registro realista – tornam-se cada vez mais revoltados, cada qual à sua maneira particular, ao mundo violento onde vivem.

A mão pesada de Trapero constrói uma atmosfera naturalista, e por isso mesmo, irrespirável: é especialmente importante notar a utilização do termo para ter-se noção do que vai encontrar aqui – após os grandes planos gerais de localização no início, o que se terá a seguir são travellings que caminham hesitantes juntos com os personagens que enfocam becos escuros, especialmente assustadores; consumo degradante de drogas; violência que surge repentinamente e toma os sentidos de assalto; exposição de cadáveres; a preocupação é menor com individualizar e analisar e mais denunciar o atrito entre vontade e dificuldade e entre esperança e frustração e como isso afeta todas as pessoas enfocadas pela câmera – homens, mulheres, crianças e adultos.

A câmera do diretor nunca é de percepção plena – sempre se mantém distante, jamais melodramática, nunca impondo um ritmo rápido – como um elefante, o modelo clássico de narrativa arquitetado pelo diretor é determinante em transmitir o peso de uma situação insustentável e as constantes vítimas disso. É um filme escuro e opressivo que junto com o igualmente noturno Abutres cria um cinema violento, não imprevisível, mas inesperado.

As lentes formam, plano a plano, um grito que pouco se concretiza (exceto nas cenas de repressão policial), mas que se acumula dia após dia. As favelas gritam o tempo todo, mas não são ouvidas. As pilhas de corpos – de doentes viciados, de feridos em combate, de mortos nas guerras civis silenciosas – só aumentam.  Os padres e a assistente social nem tem como resistir e a câmera que grita mergulha cada vez mais fundo nesse inferno criado por descaso, indiferença, ilusão, preconceito e ódio. O tom de Trapero é sempre amargo e seus finais sempre trazem uma nota melancólica de impotência – tanto para agir, quanto para escapar do inferno pessoal e coletivo. Se algum deles consegue escapar, nunca sabemos como será ao virar a esquina. Ele simplesmente se recusa a responder.

Essa atmosfera crua e visceral aliada ao modelo de narração sempre funcional de Trapero foram responsáveis, mais uma vez, pelo grito cinematográfico de protesto que firma seu diretor como um dos mais sólidos narradores de imagens socialmente engajadas neste início de século. Sempre assustador, tétrico e bizarro às vezes, os filmes de Trapero  não vão perder a atualidade e a força tão cedo. Para ver de olhos e ouvidos atentos - seu grito visual, mais uma vez, é brutal e certeiro. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.