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Críticas

Cineplayers

El Topo, um faroeste mexicano lotado de simbolismos e personagens fortes. Uma obra-prima do gênero!

9,0

Antes de se ver El Topo, há de se ter em mente o universo em que se encontra. Ele é um western, mas se passa longe do tempo das diligências de John Ford e John Wayne, tampouco do faroeste escrachado, o clássico bangue-bangue (onde as balas se multiplicam no revólver do mocinho). Ele se aproxima mais do western spaghetti - pode-se inclusive considerá-lo uma homenagem ao gênero - mas vai além. É como uma mistura bizarra de Leone e Buñuel. E Fellini. Um mundo deserto e sádico onde predominam a cultura mexicana, o culto às armas e o fanatismo. Uma jornada pelo surreal repleta de simbolismos e imagens impactantes - isto sim é El Topo.

O nosso herói chamado 'el Topo' (literalmente, a toupeira) é um pistoleiro todo vestido de preto, interpretado pelo próprio diretor Jodorowsky, que vaga pelo mundo sem motivo aparente, ajudando as pessoas em seu caminho. Ele seguiria a mesma linha do herói transcendente sem nome de Clint Eastwood e Yojimbo, mas ele tem uma companhia um tanto inusitada, que é seu filho pequeno Brontis. Ao contrário de el Topo, o garoto não usa roupa alguma, apenas um chapéu e, eventualmente, uma arma na mão. Logo na cena inicial, vemos os dois andando a cavalo até um relógio solar no meio do deserto aonde o garoto - que estava completando sete anos - deve enterrar seu brinquedo preferido de criança e um retrato da sua mãe. Este simbolismo de se livrar de suas posses para poder crescer será recorrente durante o filme. Eles continuam a vagar pelo deserto, até chegarem numa vila, completamente massacrada; cavalos e bodes desvicerados, pessoas mortas estiradas no chão, uma delas enfiada numa estaca, rios de sangue cortando as ruas, dezenas de noivas estupradas e degoladas na porta da igreja. Dentro desta, dezenas de noivos enforcados. Na porta, um homem se arrasta e pede para ser morto. El Topo dá o revólver a seu filho, que atira no homem e depois abraça o pai. Toda esta cena serve como um batismo ao pequeno Brontis, desde o enterro de sua vida passada (a vida de criança) até quando ele cruza o rio de sangue e tem sua primeira morte.

Depois desta introdução, o filme divide-se em três partes, sendo a primeira uma luta de el Topo com bandidos. Quando pai e filho estão passando por um vale de rochedos, um bandido vê os anéis preciosos de el Topo e, junto com seus dois comparsas, vai atacá-lo. No começo, a provocação deles tanto a Brontis, ao cavalo e a el Topo são ignoradas, mas eles logo chamam-no para um duelo. Um balão é enchido de ar e posto no chão; quando o ar, que sai lentamente, se esgotar, começa o tiroteio. Logo que o balão murcha, el Topo puxa rapidamente dois revólveres e mata dois dos bandidos. O que sobra é convidado para um duelo físico mas perde, e antes de morrer é obrigado a contar que o autor da chacina foi o Coronel e seus cinco comparsas. El Topo recompensa-o pondo seus anéis dentro da boca do bandido, já morto, e vai com Brontis até uma missão franciscana onde se encontravam os malfeitores. Lá, quatro bandidos sodomizam quatro jovens padres, enquanto o quinto atira aleatoreamente contra uma multidão. Dentro da cabana central está o Coronel, sendo ajudado por uma franciscana que ele pegara como amante. Logo que ela entra, o Coronel está estirado no chão de cueca; ele espreguiça-se todo e pede ajuda para se levantar, como um bebê. A mulher começa a vestí-lo, e ele começa a ganhar força e confiança. Ela põe-lhe uma leve maquiagem e um topete falso, para disfarçar a careca, em seguida suas botas e cinto. Já totalmente vestido, ele se transforma numa figura amedrontadora. É interessante notar como uma farda militar e uma aparência imponente mudam o caráter da pessoa, e como os outros o vêem. O Coronel dá então sua mulher aos seus quatro servos (que imitam cães carentes), mas el Topo, que já havia matado o quinto bandido e estava de espera, chega arrombando a porta da frente e rende todos. Brontis retira as armas dos cinco, mas um deles tinha uma pistola escondida, e tenta atirar em el Topo, mas é morto por este primeiro (notem a expressão de felicidade no rosto dos padres ao verem o bandido inutilmente correndo de um lado pro outro sangrando, como se quisesse fugir da morte). El Topo então chama o Coronel para um duelo com armas; este tenta escapar, mas os dois acabam numa arena circular onde se enfrentam. El Topo fica de costas, dando ao oponente uma vantagem, mas quando este vai atirar na nuca do herói, ele vira e acerta a mão do Coronel, derrubando sua arma. Os padres e os três bandidos (que na verdade tinham medo do coronel) vibram. El Topo então arranca o topete e as roupas do Coronel, e eles vibram mais ainda. Já totalmente indefeso como uma criança, ele pergunta a el Topo quem ele era para fazer justiça. "Sou Deus", responde o pistoleiro, que com uma faca, 'castra' o velho Coronel, que sai melancólico atrás de sua escopeta, enfia-a na boca e atira. A multidão, já liberta, executa os três bandidos restantes, e a mulher, fascinada pelo poder e presença de el Topo, implora para ir com ele. No começo ele nega, e Brontis tenta afastá-la, mas el Topo decide por levá-la, e abandonar o filho aos cuidados dos monges franciscanos.

El Topo e a mulher param numa lagoa para se refrescarem; enquanto ele toca flauta, ela se banha. Ele decide chamá-la de Mara, em referência à água amarga que Moisés encontra no deserto (mais sobre isto depois). Eles então partem para o deserto sem fim, lugar onde escolhem para morar. Mara diz que é impossível sobreviver ali, mas el Topo prova-a errada: ele enfia a mão na areia e tira ovos de tartaruga; para beber, ele atira numa rocha, e dela brota um chafariz de água. Mara, encantada com os 'poderes' de el Topo, resolve tentar ela mesma, mas não acha nem comida nem água. Ele, sentado na areia em posição de lótus, e ela andando em círculos ao redor dele gritando "Nada, nada, nada...". Ele calmamente retira o chapéu, o cinto, as pistolas, abre a calça e se levanta, começa a meditar e depois atinge Mara no rosto, arrancando-lhe as roupas e estuprando-a logo em seguida. Este gesto é na verdade uma libertação para Mara, ela que nunca tinha tido um orgasmo, agora o teve, e com isso se transforma. Agora ela consegue achar ovos de tartaruga na areia com facilidade, e chega perto de uma rocha (no formato de um pênis, o pênis de el Topo), atira nela e dela sai água (uma analogia ao sêmen). Ela, agora em paridade com el Topo, diz que só pode amá-lo caso ele derrote os quatro mestres da pistola que habitam no deserto (ela parece só gostar de el Topo quando este é superior a ela). Começa então a segunda parte do filme e, na minha opinião, a melhor, que é a batalha dos quatro mestres.

O Primeiro Mestre

Sendo o deserto circular, diz el Topo, eles têm de viajar em círculos para conseguir achar os mestres. Dias, semanas, meses se passam e nada. Mara já está perdendo a paciência, mas el Topo diz para ela ter calma, pois eram os mestres que tinham de encontrá-los, e não o contrário. Vê-se então um sinal no céu: era a chamada do primeiro mestre. El Topo chega numa planície arenosa, onde tem uma torre octogonal, que é a morada do mestre. Ele é atendido pelo ajudante do mestre, o homem-duplo. O homem-duplo são, na verdade, dois homens; um sem braços e o outro sem pernas, sendo que o sem pernas está amarrado às costas do sem braço, e assim eles se completam. O sem pernas, que está segurando um revólver e um lampião, diz a el Topo que o mestre o está esperando, e que é para ele deixar suas armas antes de subir a torre. Lá em cima, el Topo encontra um carneiro e percebe que este está sentado em cima da escotilha que levava para o interior da torre. Dentro está o primeiro mestre, um homem franzino de longos cabelos pretos e espeço bigode, que usa apenas uma tanga para cobrir o sexo. Ele fala que não necessita de luz, pois é cego. Os dois conversam um pouco, enquanto o homem-duplo sobe as escadas, para dar uma demonstração do poder do mestre. Quando chega no topo, o homem-duplo atira no ombro do mestre, mas quase não sangra o ferimento. O mestre diz que não oferece resistência às balas, e que estas atravessam seu corpo pelos espaços vazios entre as veias e tecidos. El Topo, totalmente desacreditado, volta para um oásis ali perto, onde Mara o esperava. Esta diz que ele não deve desistir, que deve inclusive trapacear se for necessário; el Topo afunda na lagoa em meditação. No dia seguinte, os dois se preparam para o duelo. O mestre está sendo preparado para o combate, tendo pintado pequenas bolas vermelhas nos pontos vitais de seu corpo. Eles então começam a se aproximar um do outro lentamente, até o local determinado, mas no meio do caminho o mestre cai subitamente num buraco cobreto, buraco este que el Topo havia cavado durante a noite; no susto, o mestre não consegue tirar a pistola, e el Topo atira na testa dele (um de seus pontos vitais), matando-o.

O homem duplo corre furiosamente em direção dele, mas é derrubado com facilidade, e Mara mata ambos. El Topo bota o corpo dos dois lado a lado, como se até na morte formassem uma unidade, e vai embora com Mara. Aparece então uma mulher a cavalo, toda vestida de preto (na verdade, vestida exatamente como el Topo; ela serve como alter-ego do herói), que atira na cabeça do então morto primeiro mestre e some. No oásis, el Topo e Mara descansam, quando aparece a mulher de preto, dizendo saber a localidade do segundo mestre. Ela então despe-se para tomar banho junto à Mara, e dá a esta um espelho. Assim como Narciso, que se encantou com a própria imagem ao vê-la refletida n'água, o espelho consome Mara de tal jeito que ela não o larga mais, inclusive enquanto transa com el Topo na areia. Já cansado desta embromação, ele atira no espelho, quebrando assim o 'feitiço' de Mara, e guarda no bolso os cacos. Depois de muito andar, eles chegam ao segundo mestre.

O Segundo Mestre

Ao chegarem, vemos uma mulher sentada numa mesa com cartas de tarô e uma coruja crucificada em cima. Ela é a mãe do segundo mestre, e diz que permitirá el Topo lutar com ele, porque as cartas previram assim. Após atravessar um pequeno córrego, ele chega ao mestre, que está sentado ao lado de sua cabana, brincando com uma réplica da pirâmide de Quéops, feita de palitos de dente. Ele concorda em duelar, mas assim que el Topo tira seu revolver, o mestre (numa velocidade assombrante) atira primeiro, derrubando a arma da mão do pistoleiro. Ele então mira na cabeça de el Topo e diz: "Bam, você está morto!" Ele então vai explicar a el Topo o segredo de sua força. Ele começou trabalhando muito fazendo objetos de cobre, oque fortaleceu seus dedos. Por ter tamanha força, ele consegue controlar objetos tão delicados quanto sua pirâmide de palitos (ele demonstra jogando ela para cima, e de uma mão para outra); assim que el Topo tenta pegá-la, ela se desmancha em suas mãos. O mestre então propõe outra demonstração: duas estrelas de palitos são postas no chão, e tanto el Topo quanto o mestre atirarão em uma delas. O pistoleiro atira e desmancha a forma toda, enquanto o mestre atira e derruba apenas um palito. "Um disparo delicado e limpo destrói o preciso". O mestre então começa a golpear el Topo, dizendo que a perfeição é se perder no outro, e como ele não ama ninguém, não teria ninguém para ajudá-lo caso sucumbisse. O mestre, ao contrário, tem em sua mãe uma completa fidelidade e amor, e isso é a razão de sua força. O mestre dá-lhe de presente um pequeno copo de cobre, e mais um duelo é preparado. Vendo os pés descalços da mãe, el Topo disfarçadamente joga os cacos de vidro do espelho de Mara no chão, e quando ela vai entregar-lhe o revolver, pisa nos cacos e volta gritando para a cadeira (emanando grunhidos de aves), e o mestre instantaneamente corre para ajudá-la. El Topo chega então por trás e, provando que seu complexo de Édipo foi na verdade a causa de sua derrota, atira em sua cabeça.

Com mais um mestre morto, ele volta para Mara. Esta agora está duelando a cavalo com a mulher de preto, exigindo que ela ficasse longe de el Topo, mas a mulher é bem mais hábil, e chicoteia Mara até esta cair em prantos sangrando. A mulher de preto chega perto dela, tira-lhe a camisa e começa a lamber seus ferimentos. Mara gosta, e as duas logo se beijam, mas el Topo não parece se importar.

O Terceiro Mestre

Ao andarem mais, el Topo e as duas encontram um coelho branco sendo devorado por um corvo. El Topo olha pelos cantos e vê outro coelho branco, amarrado a uma corda. Ele segue a corda, e vai dar num longo curral de coelhos brancos, a habitação do terceiro mestre. Antes de entrar no curral, ele joga sua arma e seu cinto de balas no chão, mas o mestre (um mexicano de aparência indígena) diz que isto não era necessário, que confiava nele. Ele vê que el Topo carregava uma flauta, e propõe que ambos se conheçam pela música (em referência à uma antiga história de Confúcio). Eles formam então um belo dueto de flauta e violino, e o mestre diz que el Topo estava cansado de trapacear (em relação aos dois mestres anteriores), queria fazer as coisas da maneira correta e veio preparado a lhe entregar a vida; o mestre conclui que, por não temer mais a morte, el Topo era um inimigo perigoso. Ele fala que o pistoleiro traz uma doença no coração, que está matando os coelhos dele (dos 300 originalmente, restam poucos vivos) e que na medida em que ele se aproximou do curral, eles começaram a morrer, e que logo nenhum estaria vivo. Ele mostra ao pistoleiro seu revolver, feito à mão por ele mesmo: de madeira e ferro, é simples, mas muito bem feito, e só consegue atirar uma bala, sempre certeira e mortal. O mestre mostra sua perfeição atirando, ele e el Topo, ao mesmo tempo em dois corvos. O que el Topo matou recebeu o tiro na cabeça, enquanto o dele foi no coração. Ele diz que o pistoleiro tem de trocar os dois de lugar, querendo dizer que ele agia demais pela razão, e tinha seguir mais o coração. Sem mais conversas, o duelo chega; eles se encontram cada um de um lado do pequeno poço no centro do curral, e o mestre atira mais rápido, atingindo el Topo no coração. Este cai, mas logo se levanta rindo, porque o pequeno prato de cobre do mestre anterior, que estava guardado em seu peito, havia-lhe salvo a vida. Como o terceiro mestre só podia disparar uma bala, el Topo percebe que "perfeição demais é um erro", e mata o terceiro mestre.

Este cai dentro do poço, cuja água logo fica vermelha. El Topo tira-o de lá, o põe ao lado de sua tenda, e coloca todos os coelhos mortos em cima do mestre, como um caixão. Na volta, Mara está ainda mais feliz, mas el Topo parece não lhe dar atenção; sua mente está dispersa demais para se importar com ela. No caminho rumo ao quarto mestre, a mulher de preto abre um fruto com uma faca e começa a lambê-lo por dentro (numa analogia ao sexo oral feminino), e oferece a Mara, que recusa à princípio, mas logo se entrega aos beijos da mulher. Estando dividida entre sua nova paixão e el Topo (que fica cada vez mais forte), ela se entrega ao pistoleiro, que novamente a recusa.

O Quarto Mestre

Chega então o momento final. O quarto e último mestre é um velhinho de longos cabelos brancos e crespos, sentado num banco. El Topo se aproxima e chama-o para um duelo, que ele logo recusa. Ele diz que à tempos trocou sua arma por uma rede para caçar mariposas e, assim, teria de duelar com as mãos. Ele começa a empurrar e provocar el Topo, que reage tentando socá-lo, mas o velho mestre é rápido demais e não deixa ser tocado. Depois de um tempo, el Topo se esgota, e resolve puxar o revólver. O mestre então pega sua rede na mão e, quando el Topo atira, o mestre ricocheteia a bala com a rede para perto do pé do pistoleiro. "Minha rede é mais forte que sua arma", ele diz, e fala que a próxima bala seria ricocheteada para o coração de el Topo. Este pensa em atirar, mas exita no último instante, e cai de exaustão no chão. O mestre chega perto e diz que el Topo não tinha como ganhar, pois o mestre não tinha nada a perder. Quando ele fala que poderia ter tirado a vida do velho, este diz que sua vida não vale nada, pega então a pistola de el Topo e dá um tiro em si mesmo. El Topo corre para segurá-lo e, enquanto ele morre, sussurra: "Você perdeu".

Primeiramente, devemos definir que a palavra 'mestre' aqui usada não foi no sentido de alguém que mestrou a arte da pistola, e sim de um mestre espiritual, um guia na constante evolução de el Topo. Desde o começo, quando el Topo buscava os mestres, não os buscava para matá-los e conclamar superioridade (apesar de que era o que Mara queria), e sim em busca de uma renovação de si mesmo. E por que ele os matou, então? O sentido do mestre é morrer. Pode-se inclusive dizer que, durante toda a vida, o mestre se prepara é para morrer; só assim seu discípulo pode progredir. Essa filosofia zen-budista é uma grande inspiração para Jodorowsky. Há uma relação interessante de simplicidade entre um mestre e outro. Percebam como suas posses vão diminuindo: o primeiro mestre morava numa torre, o segundo numa cabana, o terceiro debaixo de uma tenda, e o quarto sequer tinha casa, apenas um poste para marcar território; o primeiro tinha duas pistolas, o segundo apenas uma, o terceiro uma bem simples que só atirava uma bala, e o quarto não tinha nenhuma; o primeiro tinha um cavalo, o segundo um leão, o terceiro tinha coelhos, enqaunto o quarto só tinha uma imagem de mariposa, uma projeção de mariposa (a rede prediz que algum dia houve, ou há a possibilidade de algum dia ter alguma mariposa lá); o primeiro tinha dois ajudantes, o segundo um (sua mãe), o terceiro apenas tinha a si mesmo, e o quarto nem mesmo isso, já que sua vida de nada lhe valia. A cada novo mestre, este necessita de cada vez menos coisas para se completar e mesmo assim, cada novo mestre é mais forte que o antecessor. Até chegarmos ao quarto, que não tem nada, apenas a ausência, a não-existência, estando imerso em algo muito maior que os outros (que é o nada); exatamente por isso que este era o único que el Topo não tinha como derrotar.

O pistoleiro, após a morte do quarto, entra então em desespero, e sai correndo de volta aos outros mestres, todos sepultados e mortos, até chegar de volta ao primeiro, agora todo coberto de mel e cheio de abelhas. O homem-duplo virou esqueleto e criou hera ao redor do corpo, e o carneiro aparece sacrificado, pregado a uma das paredes da torre. Ele então derruba a torre, come um combo de mel e, como uma pedra, quebra seu revolver. Ele se reencontra com Mara, que agora se entrega por completa à ele, mas ele não a quer. Ele ameaça socá-la, mas sua mão se abre e dela sai um carinho. Ele então sai vagando, até chegar numa longa e velha ponte (pensem nisso não como um objeto real em si, mas como uma ponte nietzscheniana), por cima de um abismo de mil metros, onde começa a recitar os Palmos, e prepara para se atirar de lá, quando chega a mulher de preto. Ela ameaça atirar em el Topo, e lhe entrega um revólver para um duelo. Mas ele já não mais se interessa por isso, e recusa o duelo, se entregando de braços abertos à mulher. Ela lhe fere as mãos e os pés e, quando chega Mara, lhe entrega o revolver e pede que esta escolha entre ela e el Topo. Mara escolhe a mulher, e atira no lado direito da barriga do pistoleiro, que cai em agonia, vendo as duas se beijarem ardorosamente, e saírem galopando juntas para longe. Já inconsciente e no chão, vêm várias pessoas, mendigos, deformados, aleijados, e carregam el Topo para longe dali.

Antes de começar a terceira parte, quero abrir um parêntese sobre a trajetória de el Topo até aqui. Como eu disse, ele começa como uma espécie de justiceiro anônimo, que vaga sem rumo defendendo os fracos neste tão perturbador mundo. Mas assim que começa a parte dos quatro mestres, ele assume um caráter mais messiânico, e o fato dele estar em constante evolução espiritual reforça isso. A própria mãe do segundo mestre fala que ele é um enviado de Deus, previsto nas cartas de tarô. Há também vários paralelos com as histórias bíblicas, a começar pela própria vagação sem rumo dele no deserto, que espelha a de Moisés: quando ele e Mara estão na lagoa, a água em que ela bebe está amarga, ele diz que Moisés uma vez transformou água amarga em doce e deu à ela o nome de Mara, el Topo então enfia um bastão na lagoa, meche um pouco e esta fica doce; a parte de tirar água da pedra, foi um dos milagres de Moisés; os coelhos pegando fogo no final, como o encontro de Moisés com o arbusto queimando. Já a parte de redenção dele se assemelha a Jesus (inclusive, as cinco balas que ele recebe no final são nos mesmos locais dos cinco ferimentos de cristo quando crucificado). Mara enxergava nele um ser superior ao qual ela queria adorar mas, ao passo em que ele vai ficando mais forte, ele também vai se questionando quanto à tudo aquilo, e ao final, já não mais consegue lutar. Assim com a toupeira que cava buracos na terra querendo chegar ao sol e quando chega, se cega (explicação do começo do filme), el Topo busca de certa forma uma iluminação, mas esta acaba por ser mais dura do que imaginava. Mara então parte para a pessoa mais forte no momento, que é a mulher de preto, abandonando assim o antigo amante. E então seguimos para a terceira parte.

El Topo foi levado pelo grupo para uma caverna dentro de uma montanha, onde o puseram sentado em posição de lótus, com os cabelos e barba clareados, e lá permaneceu inconsciente por vários anos, sendo cultuado como aquele que os traria a salvação. Um dia, ele acorda naquele ambiente estranho, e a garota anã que cuidava dele leva-o para conhecer a matriarca do grupo. Este grupo trata-se de várias pessoas considerados párias na sociedade e exilados na caverna, e desejavam voltar à superfície e ir morar numa vila que havia na base da montanha. El Topo fala com a matriarca, uma senhora miúda de mais de 100 anos, com volumosos cabelos brancos, e uma túnica com o símbolo da Árvore da Vida estampado na frente. Ela lhe oferece um tipo de besouro egípcio para chupar (que é usado como droga psicodélica, como lamber sapo); o ex-pistoleiro entra em transe, e cai para beijar a velha, se embolando na túnica dela (a cena em que ele sai de baixo da túnica parece que ela esta dando à luz el Topo, como se ele estivesse renascendo). As pessoas então raspam o cabelo, a barba e as sobrancelhas de el Topo, que fica agora parecendo um jovem (o que reforça a idéia de renascimento), e lhe dão umas vestes simples. Ele então promete que irá à vila conseguir dinheiro para cavar um túnel para os exilados, e assim conseguirem sair da caverna (cuja única saída era por cima, numa escalada que demorava dias).

Mas a situação na vila não é nada animadora: vários indígenas mexicanos e alguns negros são comerciados na praça central como gado (inclusive são marcados à ferro quente), e usados como tal também, onde as senhoras burguesas montam neles e os usam como transporte. Alguns deles tentam fugir, mas são capturados pelos homens do xerife, e executados. Um escravo negro é abusado sexualmente por várias senhoras idosas à quem servia, e depois acusado de estuprador e açoitado na praça. El Topo e a garota anã chegam na cidade de burrico, e fazem performances de comédia trapalhão em troca de esmolas. Eles usam o dinheiro para comprar dinamite e assim tocar o túnel para frente, mas precisam de muito mais dinheiro. Eles voltam lá no dia seguinte, mas a cidade estava entretida na luta (forçada) de dois mexicanos, uma espécie de boxe com arame farpado; el Topo e a garota são chamados para trabalharem no bar secreto da cidade (secreto porque a aliança de senhoras para a moral sempre vistoriava). Lá dentro, várias prostitutas nuas dançavam com quem quer que fossem, algumas delas apenas ficavam estendidas no chão enquanto a música tocava. O público do bar quer ver o número de comédia do beijo de el Topo e da garota, que o fazem meio constrangidos. Mas o público quer ver mais, e exigem que ambos tirem a roupa e transem, o que eles relutam, mas acabam obedecendo. Enquanto isso, um jovem padre que andava pelas ruas vê a briga de boxe, onde ambos já estavam no limite, e caem mortos. O padre fica perplexo com a cena, e ainda mais quando a multidão vai parabenizar o morto que 'morreu por último', sendo assim o campeão.

Mais tarde, há uma seção de 'fé' na igreja local. O símbolo da igreja - um triângulo com um olho no meio - é na vida real um símbolo maçônico, que foi pervertido (na definição do próprio Jodorowsky) nas notas de dólar; um símbolo religioso transformado em símbolo capitalista com a maior facilidade. O padre regente da igreja põe uma bala num revólver e pede que a multidão faça roleta russa, um por um e, a cada um que se salva, todos gritam "Milagre!". Chega a vez do padre novo, que hesita um pouco, até o regente falar que a bala era de mentira. O padre novo se zanga, pega uma bala de verdade, põe na arma e atira; nada acontece. Outra pessoa tenta e também se safa. Uma criança se empolga para tentar também, mas dessa vez dá azar, e seus miolos voam para cima de toda a multidão: o circo está desfeito. O padre regente vai embora, e o novo tira toda aquela perversão do símbolo do triângulo e olho das paredes. Neste momento, el Topo e a garota têm uma discussão, já que ela está muito envergonhada para sequer olhar para ele, então este decide levá-la à igreja para se casarem. Chegando lá, ele e o padre novo se olham e imediatamente se reconhecem: era Brontis, antigo filho de el Topo abandonado no começo da estória. Este vai para cima do pai com fúria, ameaçando matá-lo, mas a garota o interrompe, dizendo que ele tinha uma missão à fazer. Brontis então deixa el Topo viver até completar o túnel, mas não o tiraria de vista. As escavações demoram muito, e Brontis (agora vestido exatamente igual ao antigo el Topo), ajuda-os a cavar e a mendigar, até que o túnel finalmente fica pronto. Enquanto a garota (que já está nas últimas semanas de gravidez) entra lá dentro para avisar à todos, Brontis leva o pai para fora afim de matá-lo; mas não consegue, se dizendo impossibilitado de matar o próprio mestre. Eis então que surge uma manada de gente saindo às pressas da caverna, e que el Topo não pode conter (ele havia avisado à garota que eles não estavam preparados para sair), indo em direção à vila. Lá, as senhoras os esperam com espingardas à mão, e matam um por um assim que vão chegando, promovendo uma verdadeira carnificina. El Topo chega lá por último, desesperado, e também leva um tiro, mas não morre. Como alguém que atingiu um estado de espírito transcendente, ele avança lentamente em direção aos habitantes, recebendo dezenas de tiros sem cair, até que tira a arma de um deles e mata a todos na cidade. Enquanto isso, a garota está tendo as contrações de parto. El Topo calmamente entra num salão, pega um lampareiro, se senta em posição de lótus, derrama a gasolina em seu corpo e põe a vela acesa no peito.

Por que el Topo ateou fogo à si próprio? Pelo mesmo motivo que o quarto mestre se matou. Um mestre tem de morrer para seu discípulo poder progredir e tomar o lugar dele. Brontis não teve coragem de fazê-lo e el Topo, vendo que o túnel que cavara na verdade trouxe os exilados à destruição, resolve prolongar sua vida um pouco mais que o possível para vingá-los. Depois de terminada sua missão, sua presença no mundo já não tem porquê; é hora de Brontis seguir o seu caminho. Este no final aparece galopando com a garota e o recém-nascido bebê; eles fazem uma sepultura para o mítico herói e saem sem rumo, numa cena que remete à primeira, onde Brontis enterra sua vida passada para começar uma nova.

Este filme, na época que foi feito, foi banido do México, e passou no MoMA em Nova York, onde foi visto por John Lennon, que convenceu seu empresário, Allen Klein, a comprar os direitos do filme; mas pelo seu conteúdo controverso, só era passado uma vez por dia, à meia-noite, e fez um arrebatador sucesso. Assim criou-se a cultura dos 'midnight movies', onde El Topo sagra-se cult clássico dos anos 70. Visualmente a obra é impressionante, com imagens inesquecíveis (Jodorowsky sabe trabalhar como poucos a estética da 'imagem diferente'), assim como uma trilha sonora fantástica, composta toda pelo diretor. O diretor também tentou expressar o máximo de realismo possível (não tão realista quando seu filme anterior, Fando y Liz, onde até o sangue era real), então temos Brontis, o filho de el Topo, é filho do Jodorowsky na vida real, e também se chama Brontis (na cena inicial, o urso realmente era o primeiro brinquedo do garoto na vida real, assim como aquele era o retrato de sua mãe); os coelhos realmente foram mortos, todos com golpes de caratê pelo diretor (ele disse que queria 10 mil coelhos, mas só conseguiu 300, e 300 coelhos não significavam nada vivos. Detalhe: ele salvou 26 que achava muito bonitos); na cena onde el Topo estupra Mara, os dois atores realmente fizeram sexo; todos os aleijados são aleijados de verdade, que o diretor achou por aí e chamou para fazer o filme; e por aí vai... Muitas pessoas reclamam da terceira parte, onde o clima muda muito, e destoa do resto do filme, mas o próprio personagem mudou por dentro (aliás, o filme inteiro é uma constante mudança); a minha única reclamação sobre a terceira parte é que ficou uns 10 minutos longa demais, o que prejudica no ritmo final. Sempre trabalhando com bastante simbolismo, que remetem ao cristianismo, judaísmo, zen-budismo e taoísmo, é um filme riquíssimo em detalhes, que necessitam de várias vezes assistido para serem assimilados (e certamente há muitos outros que jamais entenderemos). Mesmo para quem não gosta de filmes ditos 'cabeça' pode se entreter, afinal, ele é bastante divertido e intrigante.

Certa vez, quando Jodorowsky chegou a Paris ainda jovem, ligou logo que entrou no hotel para André Breton, às 3 da manhã, dizendo: "Estou aqui". Breton perguntou quem ele era, e este respondeu "Meu nome é Jodorowsky, e eu estou aqui para salvar o surrealismo". Meu caro Alexandro, meus parabéns.

Comentários (5)

Danilo Itonaga | quarta-feira, 10 de Abril de 2013 - 12:41

Bela explicação sobre o filme. Realmente não é um filme fácil de entender, mas com algumas explicações consegui compreender algumas coisas! 😉

Landerson DSP | terça-feira, 11 de Fevereiro de 2014 - 11:26

Uma das críticas mais completas do Cineplayers. Na verdade, chamar de crítica é muito genérico. Um verdadeiro tratado, como bem disse o Victor Hugo Paiva Coelho.

Rodrigo Giulianno | quarta-feira, 24 de Setembro de 2014 - 15:14

Por onde anda este Roberto?

Porra! A melhor crítica do cineplayers!!

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