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El Camino: A Breaking Bad Film

(El Camino: A Breaking Bad Film, 2019)
7,1
Média
129 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Complementar, mas com méritos próprios

7,5

Atenção: o texto a seguir contém spoilers da série Breaking Bad: A Química do Mal

Quando exibiu o último episódio "Felina", em 29 de setembro de 2013, Breaking Bad: A Química do Mal encerrou a história de seu protagonista Walter White, um professor de química que ao se descobrir com câncer de pulmão acabou se tornando o temido produtor e chefe de tráfico Heisenberg. Os 63 episódios contaram essa transição sem pressa alguma, e o resultado foi uma série que alcançou avaliação altíssima entre crítica e público. Ainda hoje, é lembrada não apenas como uma obra revolucionária, mas uma das melhores da história de sua mídia. Mas havia uma pergunta restante: Walter White havia conhecido a desgraça e a redenção. E quanto a Jesse Pinkman?

O segundo personagem mais importante da narrativa de Breaking Bad terminou a série original fugindo. Para muitos, era um final satisfatório um personagem que sofreu tanto — abandonado pela família, perdendo os dois maiores amores de sua vida, manipulado pela sordidez de Walter White, feito escravo por uma gangue neonazista  acabasse seu arco com o mundo à sua frente. Mas e para aqueles que ficaram com uma pulga atrás da orelha sobre qual teria sido o destino do personagem? Para esses e para outros, em caráter confidencial, Vince Gilligan roteirizou e dirigiu e Aaron Paul protagonizou o epílogo El Camino: A Breaking Bad Movie.

Filmes que não sejam baseados, mas sim complementam a narrativa de suas séries matriciais não são exatamente uma novidade — pergunte a Star Trek e Arquivo X, por exemplo. Só neste ano, inclusive, Downton Abbey e Deadwood ganharam filmes próprios. Mas com o status de Breaking Bad, mantido pela excelência do spin-off prequel Better Call Saul, com certeza El Camino desperta uma atenção singular entre o público do meio. Esse novo filme tem noção da sua responsabilidade, mas felizmente também sabe andar com seus próprios passos. 

Começando no momento em que Breaking Bad termina, El Camino mostra as dificuldades de Jesse em escapar tanto da polícia, que ainda tenta entender o fenômeno Heisenberg, quanto de outros criminosos, que tal como abutres vão atrás dos espólios de um império ilegal que acaba de ruir. Espreitando por Albuquerque como um fantasma, entrando em ocasional contato com figuras do seu passado, Jesse percebe que nem todo fantasma será tão fácil assim de enterrar, com o que restou do legado de White podendo levá-lo junto.

El Camino é Breaking Bad em seu momento mais western. Sempre houve um flerte, é verdade a série sempre usou e abusou de policiais, marginais, tiroteios, perseguições e das paisagens áridas para construir sua versão particular do gênero de crime. Mas agora Jesse Pinkman é filmado tal como outras figuras trágicas do  imaginário do faroeste, vide Johnny Guitar, O Retorno de Frank James ou Os Imperdoáveis, ou o eu-lírico de canções de Johnny Cash e Marty Robbins. Uma narrativa em que acompanhamos os passos de um protagonista de vida conturbada perseguindo uma visão própria de justiça ou compensação pessoal.

Vince Gilligan trata cada ambiente e cada personagem como um caminho ou obstáculo para Jesse conseguir começar de novo; a preocupação de entrar em uma nova rua ou casa e ser reconhecido é constante; e impasses imprevisíveis surgem como recurso cênico especialmente dramático. A preparação é intensa e cada cenário pede por maior inventividade de Jesse. Há até mesmo uma cena com uma citação direta e com emulação cênica de acordo e que confirme para o autor que as ações de White evisceraram aquela Albuquerque dividida entre o mundo da superfície e um submundo sombrio.

De certa forma, para reforçar esse ponto, há dois Jesse Pinkman em El Camino, identificados visualmente, inclusive Jesse como fugitivo e Jesse como prisioneiro —, com uma boa parte do filme sendo apresentado em flashbacks. Isso atrapalha um tanto o ritmo tenso do que vemos no tempo presente, e a tentativa de criar tensões no passado já não funciona tanto, pois já sabemos (mais ou menos) como será sua conclusão. Mas, ao mesmo tempo, sua condução também provê uma bela construção de personagens, com Jesse sendo atormentado pelo passado, com texturas, objetos e situações relembrando épocas degradantes de sua vida.

Mas se Gilligan deixou fluir o fator western, nunca deixou de negar o lado neo-noir de Breaking Bad, e muitos de seus desenhos de cena remetem à visão de Welles em filmes como A Dama de Shanghai, A Marca da Maldade ou Cidadão Kane — com um grande plano mais demorado servindo como mola mestra para a condução e construção dramática e de suspense. Os grandes espaços, as perspectivas angulosas, a câmera engrandecendo ou esmagando seus personagens, o abuso cenográfico de temática urbana reforçam uma farra selvagem de consumo de onde o protagonista foi deslocado. A investigação é trocada pela via crúcis do passado e o suspense do presente, é verdade, mas a atmosfera evocada pela visão um tanto maneirista de estética para a evocação de um sentido dá um senso classicista natural para o spin-off do diretor e roteirista. É uma nova visão de um velho arquétipo.

De fato, El Camino é um complemento e um epílogo à sua obra bastante digno e com gosto especial para quem assistiu antes — as referências e participações aumentam o apreço dos fãs por aqueles rostos que nos acostumamos a ver. Mas ele também existe por si só, diferindo tanto da vocação de gênero à la Tarantino e Scorsese de Breaking Bad ou do choque entre drama, comédia, suspense e introspecção que Better Call Saul aborda tão bem. 

Fica no ar, também, a impressão de que o filme poderia terminar um pouco antes, o que acaba por distender o poder de seu clímax e tornar os contemplativos momentos finais um tanto anticlimáticos. Mas ainda assim o terço final traz momentos poderosos, que andam com seu personagem, mexem mais profundamente em sua alma e termina sua jornada de maneira definitiva. Ou quem sabe um novo leque acaba de ser aberto?

Há muitos universos naquele mundo iniciado em 2007, e o que aconteceu com Jesse Pinkman é mais um deles: triste e doloroso, sobre fantasmas do passado e sacrifícios pelo futuro, mas cuja visão evocativa de cinema e a atuação sofrida e estóica de Aaron Paul conferindo um centro de poder e de anseio à obra. Ainda assim, toda essa salada referencial continua a fazer sentido por si só. Conversando entre si, é claro, mas com cada personagem elevado ao posto de protagonista pedindo para si um trato único e com seu próprio chamariz. Não é surpresa, com essa visão compromissada aos personagens, suas questões e complexidades, que tal universo ainda tenha lenha para queimar.

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