Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Descobrir e imaginar.

8,5
Há um caso famoso; Herzog estava participando de um painel em um festival de cinema onde estavam vários documentaristas adeptos do cinema-verité, o cinema que prima pela observação em busca da verdade dos fatos, com o mínimo de intervenção possível de quem filma. “O cineasta deve ser a mosca na parede”, disse. O diretor alemão famoso por suas ficções ensandecidas como O Enigma de Kaspar Hauser e Fitzcarraldo defendia seu direito como documentarista de, em suas próprias palavras, de “se envolver, esculpir, encenar, intrometer e inventar”. Certa feita, pegou o microfone e disse: “Não, somos os diretores, os criadores, devemos ser a vespa que pica”. Causou um falatório entre o público e se retirou sem demora.

Em seu papel de vespa que pica, já vimos muitos documentários pouco usuais: é o caso de filmes como Terra de Silêncio e Escuridão (1971), O Grande Êxtase do Escultor Steiner (1974), O Homem Urso (2005) e A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2011). Herzog investigava casos de temáticas pouco populares, ignoradas pela sociedade em geral, descobrindo outros mundos desconhecidos dentro do nosso e então participando do mesmo, se intrometendo,  desejando fazer diferença dentro do universo que erige. Estar dentro da própria escultura espaço-temporal e narrativa, recusando-se a sumir deu origem a documentários tão singulares quanto sua ficção, distante tanto da impessoalidade intelectual do cinema-verité e do cinema direto quanto da linguagem institucional de reportagem do documentário comum. Documentários de Herzog são documentários de Herzog, afinal. Cinema de autor não é uma noção nova, mas a pessoalidade que ele coloca em seus projetos tornam os mesmos reconhecíveis de imediato. O documentário de Herzog não tem um senhor de si, aquele que se afirma como mestre da retórica por ser ele quem escolhe para onde a câmera aponta ou que sequência ou depoimento entra. Aqui se fala sobre a investigação e imaginação do desconhecido, e não de uma série de linhas de raciocínio didáticas. 

Eis Os Delírios do Mundo Conectado (2016) confirma esse cinema mais do que individual. O cineasta de Munique investiga aqui a história da internet e seus efeitos no mundo, desde os seus primórdios até os dias de hoje, quando ela faz parte do nosso cotidiano de modo indissociável, com a tecnologia alcançando níveis assustadores. Tamanha a participação nas nossas vidas - utilizamos a tecnologia para comunicação, para nos examinar, para a alimentação, para o aprendizado. É um terreno de grandes utopias, como mostra o depoimento do empresário que quer colonizar Marte ou do inventor que sonha com a tecnologia substituindo as coisas mundanas, mas também de grandes pesadelos, o que vemos no segmento dos alérgicos à radiação que tem que se afastar da sociedade ou da família que ao ter uma fotografia da filha falecida vazada passou a ser vítima de cyberbullying. 

Pode parecer uma seleção de assuntos meio aleatória no início nesse documentário dividido em capítulos, mas sob o conceito enunciado pelo título faz todo sentido. Herzog nos mostra os delírios virtuais e tecnológicos da nova geração, inclusive por parte dos visionários que, algumas gerações atrás, visualizaram e ambicionaram tudo o que vivenciamos hoje através de correntes científicas e filosóficas de pensamento na vanguarda da época; porque antes de mais nada, não estamos vendo fatos (o mundo conectado), mas narrativa (seus delírios). Antes da internet existir, é um sonho. Para muitos que acabam viciados nela, é uma possibilidade de viver outra vida, criar um novo avatar. Para os desenvolvedores com planos malucos de colonização extraterrena, é mais um sonho. Mesmo para os que a vivem como um pesadelo da qual não veem a hora de acabar, não é o fato em si, mas a imaginação projetada sobre tal fato que o faz transgredir barreiras cada vez mais rapidamente. 

No título original, Lo And Behold, Herzog pede para que quem vá assistir “observe e veja” os sonhos da nossa época da maneira que Herzog escolheu baseado puramente no que mais o tocou durante a sua pesquisa. Testemunha-se aqui a imagem da imagem, uma forma obtida de muitas outras formas, o sonho de um observador que descobriu, ao longo das décadas, muitos outros Fitzcarraldos enquanto documentava o lado oculto do século vinte. Há os que considerem a criação de um novo mundo a partir da internet e da tecnologia; os que fazem campanha para que ela suma do nosso mundo; e até mesmo os que pensam no momento em que a internet passará a atuar como uma consciência coletiva. Ou como resume Herzog em sua pergunta para dois neurocirurgiões, se a internet é capaz de sonhar consigo mesma. As ambições são grandes, as perspectivas nem sempre prosaicas ou cotidianas (prestar especial atenção nas entrevistas dos pioneiros virtuais). Mas são justamente esses pensamentos maiores que a vida que acabam moldando o mundo para além dos fatos em si. 

Herzog portanto, sabendo do peso dos sonhos e das imagens para a construção do real, aponta a sua câmera para criadores e criaturas e não só descobre seus gozos e descobre suas vulnerabilidades, mas como também participa, digamos, diegeticamente falando; faz comentários bem-humorados inesperadamente (pede ao homem que planeja colonizar Marte uma passagem só de ida); avisa para o espectador que não mostrará fotos da família assediada virtualmente (em sua tradicional postura ética, como quando se recusou a divulgar um áudio em O Homem Urso); questiona neurologistas e cientistas com suas reflexões metafísicas; e o tempo todo comenta o que está sendo visto com sua narração em off. Às vezes estende a informação que não é dada no próprio depoimento, por vezes reflete sobre o que acabou de ver, por vezes avisa o que será visto e o que não será visto. 

A postura de Herzog é de intervir, mas nunca ocultar a intervenção realizada. Nunca deixa de estar claro que é sua visão, sobre algo, mas nunca algo em si. É a única maneira de costurar tantos universos diferentes costurados por uma temática tão ampla e com tantas possibilidades. Esse é um daqueles filmes que poderiam continuar literalmente para sempre. Sua postura de colocar-se para o espectador transcende a simples fórmula adotada do “talking head”, evita o tom potencialmente manipulador, pois os depoimentos aqui não apenas se complementam, mas se contradizem. Postos justos, são muitos mundos em um; muitas óticas encerradas em uma ótica só, e ótica essa que ativamente também declara sua intervenção. Ele não some por trás do filme porque suas descobertas, surpresas e indignações também são parte do filme. Assuntos como internet consciente de si mesmo ou filosofias que levam à criação de um mundo conectado recebem grande abrangência e multiplicidade; assuntos perturbadores são abordados com cautela e perspicácia expressas no contrato diretor-espectador.

Filmes também são sonhos, organizados conscientemente a partir de imagens capturadas do real; Eis Os Delírios do Mundo Conectado parte de uma premissa simples e até generalista e se desdobra ao infinito. Filmes também são tecnologia, nascidos do cinematógrafo quando o homem acreditou que o registro imóvel da realidade já não mais bastava; da sala de edição, quando o registro precisou virar narrativa. Tecnologia também é sonho, atendendo para além de nossas necessidades puramente concretas, mas à sensações e pensamentos imaginados e nunca plenamente investigados. Apontar a câmera para outros também é apontar a câmera para si. Investigar outros mundos também revela mais de si próprio que o esperado. 

Quando vemos Herzog sonhar com os sonhos dos outros, certas impressões, questionamentos e reflexões inevitavelmente nos ocorrem (desde simples interjeições como “que estranho!” até questionamentos como “mas será assim mesmo?”), seja sobre as histórias contadas, sobre a forma como o filme as apresenta, sobre como nós estamos percebendo e se temos alguma referência semelhante na nossa vida. Documentários de depoimentos criam certas conexões, do entrevistado com o entrevistador, e do entrevistador com o espectador; esse documentário aborda a internet, que conecta tudo, o tempo todo. 

Aqui o olhar não é mais sobre terras desconhecidas (como fez tanto em Fata Morgana ou mesmo no recente Visita ao Inferno), mas sobre terras conhecidas até demais; sobre quais são seus limites éticos, tecnológicos e físicos; sobre como a experiência de um computador pode ser tão fascinante e assustadora quanto assistir um vulcão em erupção; sobre como inevitavelmente somos partes do fenômeno moderno, agentes  e vítimas, sonhadores e até mesmo sonhos, receptáculos de outras projeções que começam em outro modem, para sermos objetos de admiração e ódio, e o mesmo fazermos com outros. Todos são figuras públicas e todos são audiência. O véu do templo se rasgou, abriram-se as portas e as janelas, se conhece de tudo e há muito mais para conhecer, há de se testemunhar a criação e ao mesmo tempo criar também. A virtualidade não substitui a realidade, mas tal e qual as narrativas que nos acompanham desde sempre (literatura, poesia, artes plásticas, teatro, cinema, ciências humanas, exatas e biológicas), mas é parte fundamental da mesma. Olhem e observem por vocês mesmos; eis os delírios de Herzog sobre a nova realidade.

Comentários (1)

Douglas Rodrigues de Oliveira | domingo, 12 de Fevereiro de 2017 - 11:53

Ótima análise, outra pedra no meu castelo das vontades pra checar esse 'Delírios'.

Faça login para comentar.