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Críticas

Cineplayers

Um documento indispensável aos admiradores de Orson Welles.

8,0

O lendário projeto de Orson Welles rodado no Brasil no começo de sua carreira, It's All True, assinala o começo dos problemas que agravaram a sua trajetória. Pouco antes dirigira com total liberdade de criação Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942), que o reputaram como gênio precoce da sétima arte, e ao mesmo tempo em que preparava Soberba, trabalhava simultaneamente com mais duas idéias: Jornada do Pavor (Journey Into Fear, 1943), um argumento seu que apenas produziria para um dos seus pupilos dirigir, Norman Foster (ainda que no começo se criasse a impressão de que Welles seria o co-diretor, o que perdurou como verdade durante anos) e um filme em que misturaria ficção e documentário a ser filmado na América Latina, a principio no México.

Este viria a ser o mais conturbado dos seus projetos, o primeiro dos muitos que não pôde finalizar, permanecendo como uma maldição ao longo da sua vida, o princípio da maré de azar que dificultou toda a sua carreira. Em 1985, mesmo ano em que Orson Welles morreu, foram encontradas trezentas latas com alguns rolos do documentário perdido, o que possibilitou que o assistente do cineasta nas filmagens de It's All True (Richard Wilson, que depois viria a se tornar diretor com carreira respeitável) se reunisse com os críticos Bill Krohn e Myron Meisel para dar forma aos fragmentos recuperados e pesquisar a fundo o trabalho a que Welles tanto se dedicou.

É Tudo Verdade (It's All True, 1993), o documentário realizado pelo trio de diretores, começa com a fotografia antiga de um bruxo feiticeiro, o qual um breve depoimento de um relativamente jovem Orson Welles explica que era um bruxo que encontrara no Rio de Janeiro, quando estava dirigindo o documentário, em parte para o governo norte-americano, mas especialmente para a RKO, o estúdio com o qual tinha contrato. Era um trabalho para a política de Boa Vizinhança em plena Segunda Guerra, e sua tarefa era fazer um documentário em tecnicolor sobre o carnaval brasileiro, o que o levou a pesquisar o surgimento do samba e acreditar que suas origens residiam no misticismo religioso-pagão dos morros cariocas. O feiticeiro da fotografia era um bruxo que Welles pretendia filmar num dos rituais com seu grupo, e o qual desapontou ao anunciar depois do convite feito que não poderia realizar a filmagem pretendida porque o estúdio suspendera a produção inacabada. Essa é apenas uma pequena introdução de É Tudo Verdade, mas a descrição que Welles faz do feiticeiro e o pequeno atrito que tiveram em seu último contato nos deixa com a impressão de que muito do que ocorreria dali em diante com o cineasta e seu filme abortado era resultado de uma praga do velho bruxo.

O filme prossegue com cerca de trinta minutos que sintetizam a passagem de Orson Welles pelo Brasil, começando com a premiére de Cidadão Kane, o filme que embasbacou Hollywood, e chegando ao projeto de It’s All True, uma coleção de histórias documentais que teve inicio no México, com a filmagem do pequeno segmento de “Bonito” pelo assistente Norman Foster e supervisionado por Welles, cujos fragmentos são aqui mostrados pela primeira vez. Com o convite da Boa Vizinhança para filmar no Brasil, o documentário tomou novo rumo e Welles preferiu continuá-lo em terras tupiniquins. Devendo partir no começo de 1942, a tempo de filmar o carnaval, Welles deixara Soberba montado e finalizado, porém as reações negativas do público de uma exibição-teste logo após a partida do diretor foram pretexto para o estúdio picotar Soberba cortando quarenta e cinco minutos que para sempre se perderam, e acrescentando um final feliz que contrariava os propósitos de Welles na criação desse seu segundo filme. Seus problemas estavam apenas começando.

Welles filmou o carnaval carioca com um dos coloridos em tecnicolor mais bonito já vistos na tela, o que pode ser conferido nas seqüências apresentadas no documentário ao som de sambas como Adeus, Praça Onze e Nega do Cabelo Duro. A expressão mais popular de um país, a festa imensa de um grande povo. Welles conta que filmar o carnaval carioca era como tentar capturar um furacão. Para a RKO e os governos brasileiro e norte-americano, as filmagens do carnaval já seriam o suficiente. Mas ao chegar ao Brasil, Welles calhou de encontrar como heróis nacionais quatro jangadeiros pobres que pouco antes arriscaram suas vidas durante dois meses viajando 1650 milhas da praia de Fortaleza até chegarem ao Rio de Janeiro pelo mar, com a intenção de pedir melhorias nas suas condições de vida e trabalho ao presidente Vargas, que os recebe entusiasticamente, prometendo os benefícios sociais que pediam. Alem de aclamados por todo país, o fato foi noticia na revista Time, onde meses antes Welles ficara sabendo dos acontecimentos ao ler a reportagem. O cineasta decidiu recriar a odisséia da jangada convidando os mesmos quatro jangadeiros para repetirem o trajeto, filmando o episódio como a terceira parte do seu documentário latino-americano (junto com o segmento do México e o do carnaval).

O documentário apresenta trechos dos cine-jornais da época sobre o carnaval e sobre os jangadeiros, e entrevista alguns remanescentes vivos que estiveram com Welles em sua passagem pelo Brasil. Além do próprio diretor Richard Wilson e sua esposa, o ator Grande Otelo e alguns dos parentes dos jangadeiros, entre outros que participaram das filmagens. Como uma senhora que em 1942 tinha treze anos e jamais assistira um filme na vida, mas que fora contratada para ser a mocinha da ficção romântica inserida no segmento dos jangadeiros. As atividades políticas do líder dos jangadeiros (o Jacaré), entretanto, não eram bem vistas pelo governo brasileiro, que passou a desconfiar que o documentário não ajudaria tanto a trazer turistas ao país, nem aos seus compatriotas norte-americanos, já contrariados com a insistência de Welles em filmar a pobreza dos morros cariocas. Começava ali também a fama de comunista que perseguiu o cineasta durante anos. Welles, que pouco antes havia sido pago para filmar o luxo dos milionários retratados em Kane e Soberba, resolve se concentrar agora na miséria e na escassez. Jamais o perdoaram por isso.

A fatalidade que ocorreu todos sabem: em um dia ensolarado e bonito no porto da Baía da Guanabara cheio de barcos com velas preparado para encenar a chegada triunfal dos jangadeiros ao Rio, uma onda gigante derrubou a balsa dos jangadeiros, naufragando os quatro homens. Um deles jamais apareceu de volta, justamente o líder Jacaré. O acontecimento traumatizou Welles e sua equipe, e o diretor tomou a decisão de que terminaria o filme a todo custo, ao mesmo tempo em que já acreditando que a produção estivesse amaldiçoada. Contra a vontade do estúdio e com uma pequena quantia que servia de orçamento, permaneceu dois meses filmando a história que pretendia contar entre a comunidade de pescadores pobres que até então nunca haviam visto uma câmera. Privado de câmeras que pudesse movimentar com mais facilidade e dos recursos de uma produção de larga escala, o homem que um ano antes realizara Cidadão Kane para conseguir ângulos excepcionalmente baixos colocou seus atores em plataformas altas e seu cameraman enterrado na areia com a câmera nos ombros. O documentário conta que Welles estava praticamente sozinho, fazendo uma história que amava sobre pessoas por quem se apaixonou. Ao terminar as filmagens, a equipe retornou a Hollywood e Welles compreendeu que a RKO não o permitiria finalizar o filme, demitindo-o do estúdio. Dali em diante Welles carregaria a pecha de perdulário e irresponsável, espalhando-se o boato exagerado de que viajara para a América do Sul sem roteiro e que gastara uma fortuna dos cofres do estúdio. Welles resistiu aos ataques planejando finalizar o documentário de qualquer modo, trabalhando como ator em outras produções e procurando em vão durante quatro anos financiamento para terminá-lo, até que os rolos desapareceram.

Os últimos cinqüenta minutos do documentário são uma montagem aparentemente integral do episódio da aldeia dos pescadores, com os atores não-profissionais representando a si mesmos. Começa com o corte da madeira e a construção da jangada, seguido de uma descrição da vida da população local, o relacionamento e o matrimônio da menina com o pescador, e as primeiras experiências que serviriam como teste da jangada no mar. Os rolos não tinham som, e o documentário teve que acrescentar uma trilha incidental e ruídos e efeitos sonoros improvisados. Os planos são de uma beleza fotográfica bastante poética. O ápice da dramatização é a longa travessia dos jangadeiros no oceano, saindo das praias de Fortaleza e parando no caminho para buscar comida e água, visitando outras comunidades de pescadores e angariando apoio para a causa (o que inclui passagens em Recife e Salvador), até alcançar as areias da capital carioca. O documentário se encerra com trechos do carnaval filmado por Welles. O filme de Orson Welles de 1942, inacabado, permanece um retrato verdadeiro, mas afetuoso, do Brasil. E o documentário realizado cinquenta anos depois, é a glorificação dos esforços nem sempre recompensados de um dos gigantes do cinema.

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