8,0
Xavier Dolan é um cineasta de incômodos, seja lá como isso possa ser interpretado ou de que forma será inserido e/ou analisado dentro de algum contexto. Com apenas 27 anos, 6 longas no currículo e marcando presença constante em festivais e premiações desde seu primeiro barulho atrás das câmeras com Eu Matei Minha Mãe, Dolan coleciona não apenas prêmios, mas uma legião dividida entre admiradores de seu apuro estético e cinema extremamente comunicativo com o que podemos chamar de “público jovem” e detratores que frequentemente o apontam como um alguém ainda imaturo para o cinema, egocêntrico e dono de uma pessoalidade que engole seus filmes. E negar que Dolan é um alguém de excessos certamente seria um engano, mas estaria isto significando algo necessariamente ruim?
Para Cannes, É Apenas o Fim do Mundo significou. Vaiado após sua exibição, o novo longa de Dolan (antes de The Death and Life of John F. Donovan, com previsão de lançamento este ano) se insiste em levar o espectador ao desconforto já recorrente em seus filmes, para isso nos ambientando em meio a personagens instáveis, conflituosos, onde no centro há a mágoa familiar e uma barreira que leva a incomunicabilidade. Neste caso, é sobre Louis (Gaspard Ulliel, de Hannibal - A Origem do Mal e Saint Laurent), que sem ver a família há 12 anos, decide reencontrá-los após todo esse tempo para lhes dizer que irá morrer. E não há muito o que armar no cenário com a chegada de Louis: o ressentimento já está lá implantado, alimentado e prester a explodir através do briguento irmão Antoine (Vincent Cassel, de Irreversível), a provocadora irmã Suzanne (Léa Seydoux, de Azul é a Cor Mais Quente), a cunhada passiva Catherine (Marion Cotillard, do recente Aliados) e a mãe histriônica (Nathalie Baye, que já havia trabalhado com Dolan em Laurence Anyways). A bomba está armada.
De origem teatral e baseada no texto de Jean-Luc Lagarce, o primeiro passo de Dolan é negar grande parte das influências dos palcos e transformar sua abordagem verborrágica em algo extremamente cinematográfico, e daí sentimos o impacto dos primeiros exageros de Dolan, onde sua câmera se deixa fascinar pelo rosto dos personagens e se mantém em closes claustrofóbicos que denotam a insegurança familiar e pessoal de cada um. Mas Dolan não se limita, e quando necessário, dinamiza seu foco para exibir o mosaico de olhares, reações e percepções presentes naquela casal, e o primeiro incômodo parte daí, no momento em que Dolan escolhe (é realmente um engano afirmar que o diretor não sabia o que estava fazendo) não poupar o espectador de nenhuma explosão, seja ela iminente ou não. É Apenas o Fim do Mundo ousa nos deixar exageradamente próximos aos rostos através de sua primeira arma cinematográfica: a câmera.
E se Dolan não nos poupa, tampouco há motivos para poupar seus personagens. Há tentativas, mas nenhuma chance real de perdão, redenção ou compreensão em É Apenas o Fim do Mundo. Não há caminhos que impeçam aquela família de se machucar, magoar, ferir, ameaçar, gritar, se destruir. Dolan quer levá-los e nos levar ao inferno, subindo o tom de seu filme em degraus a cada momento, e mais uma vez o desconforto é notado com violência aqui, pois não há para onde fugir. O objetivo é o inferno.
E nisso, é impossível não reconhecer que É Apenas o Fim do Mundo é um filme que se identifica pelo exagero, pelo caricatural. Tendo isto em mente, Dolan vai depender da digestão de cada um para que sua obra seja compreendida ou condenada pelo que o diretor a transformou, e aqui reafirmo, em escolhas estéticas e narrativas conscientes. Dolan parte do princípio básico de que o cinema é uma linguagem de ideias e questionamentos, de ações e reações, de composição e desconstrução, de risco e experimentação. Sim, temos aqui um Dolan mais empolgado do que nunca, ambicioso, desejoso em testar seus próprios limites e capacidades. Há de se questionar tudo isso, e com extrema razão, mas é raro vermos um cinema com tanta vontade e ferocidade como o que temos em É Apenas o Fim do Mundo, agradando ou não.
Dentro deste círculo vicioso onde os personagens gritam, mas raramente se ouvem, resta ao elenco internalizar e se preparar para deixar explodir as mágoas de seus respectivos papéis. Cassel se posiciona sempre em cena de forma raivosa, feroz, agressiva e hostil, numa representação do sentimento de inadequação e inferioridade em meio aquela família. Em seu contraponto, Cotillard sabe como exemplificar sua constante posição acuada em relação ao marido, numa rara presença vulnerável e insegura da atriz em um filme. Seydoux compõe ora com doçura, ora com rebeldia a irmã empolgada em impressionar o irmão mais novo após seu retorno, e Nathalie Baye comove como a mãe que comprova ser ainda mais compreensível do que sua presença inicial nos diz. O Louis de Ulliel está ali como o catalisador da externalização dos conflitos, e o ator, sempre à mercê das projeções dos outros rostos, consegue nos despertar empatia através de seus olhares temerosos sobre contar a verdade e a postura contida que oscila entre o arrependimento da volta e a certeza da decisão em ter sumido por tanto tempo.
Cheio das músicas pop que Dolan jamais dispensa (algumas intrusivas, é verdade) e com um trabalho de fotografia exuberante do canadense André Turpin (o ato final é de uma beleza inacreditável, o grande momento do longa), É Apenas o Fim do Mundo certamente pode ser compreendido por seu desagrado em meio a Cannes e boa parte da crítica mundial. Não é um filme fácil, não é simples de ser digerido, mas é exatamente isto que Dolan recusa sê-lo. Sim, é um filme de ego, vindo de um cineasta que quer e deseja ser notado, mas todos não o querem? Independente do agrado ou desagrado que Dolan ainda causa em seu caminho pela indústria, temos aqui o filme que comprova seu apego pelas oportunidades proporcionadas pela arte do cinema, por mais que isto signifique elevá-las a enésima potência. Um cinema contestável, é verdade, mas admirável por sua ousadia em abraçar e reconhecer seus moldes.
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