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Críticas

Cineplayers

O poder dos pequenos momentos.

7,5
Na maioria dos filmes, no momento em que a irmã do meio Irene descobre que seu pai não só tem outra família mas também outra filha também de nome Irene, o pathos do típico drama burguês encontraria a oportunidade perfeita: choveriam cenas chorosas, diálogos didáticos, confrontos previsíveis e música extradiegética sentimental e intensa. Em As Duas Irenes, longa ficcional de estréia do curta-metragista e documentarista Fábio Meira, não é bem o que acontece. 

O filme de atmosfera sobretudo austera também é, além de um filme de trama, também um filme de formação, sobre uma adolescente rebelando-se contra o mundo mágico dos pais, experimentando os típicos rituais de iniciação da adolescência (vaidade, álcool, beijos e o sexo oposto); e também é um filme de duplos, onde protagonista e deuteragonista espelham-se uma na outra, descobrindo a vida da menina homônima até então desconhecida, onde vidas espelhadas marcadas por omissão parental desaguam em diferentes respostas.

Diferente de outros filmes que procuram exagerar ou desconstruir o típico drama burguês, a obra de Fábio Meira o nega em larga escala, trabalhando em elipses que recortam os pequenos momentos de diálogo e conflito interno, frequentemente afunilando a tensão para desmanchar a mesma no anticlímax; a relação com os pais compartilha momentos tão ternos quanto conflituosos, com a primeira Irene que conhecemos em um misto de raiva, curiosidade e admiração pelo pai, e ao mesmo tempo desiludida com o mundo de conto de fadas regrado e farsesco do interior brasileiro proposto pela mãe. 

O que leva justamente As Duas Irenes a ser uma desconstrução da típica história de reviravoltas de trama é a sua preocupação com as histórias-espelho, com a incompletude de ambas as narrativas. É aí que entra a outra Irene, já com vários amigos, pretendentes, muito mais próxima da mãe que sua contraparte; mas que sente ainda mais a ausência do pai, procurando por um namorado entre os meninos que beija no cinema, mas sempre decepcionando quando os mesmos escolhem outras garotas e, como o seu pai, tornam-se ausentes.

Na outra Irene, ela procura a família nuclear, não almejando a aparência de perfeição mas antes a completude. Filha única, deseja ter uma irmã, compartilhar experiências, amadurecer, transitar entre a criança e o adulto. Já a meio-irmã procura a liberdade, seja em vestir-se, conhecer novas pessoas, a ausência de julgamento.

Não à toa, o mote do duplo nasce no primeiro enquadramento que compartilham juntas: ambas no espelho, uma encarando a outra, descobrindo-se. Por todo o restante da metragem do filme, compartilharão a busca por semelhanças, diferenças e experimentação. Com o resto do elenco a história é sobretudo de confrontação; a primeira Irene procura na mãe da meio-irmã uma mãe mais afetuosa e que viva menos das aparências; procura com a meio-irmã algo que não pode ter com as irmãs “por inteiro”, já que a mais velha acaba de fazer quinze anos e sonha com um vestido branco e receber os cumprimentos do prefeito; e com o pai, procura enfrentá-lo, mandar indiretas, tentar entender o que levou a ter duas famílias.

É nesses momentos em que valoriza o silêncio, os olhares, as frases interrompidas, que o filme alcança o seu melhor, com alguns dos confrontos diretos até destoando um pouco do tom naturalista, onde abundam planos-sequências, personagens reenquadrados e focagem seletiva, criando espécies de prisões familiares para seus personagens. 

É o caso do longo plano, por exemplo, onde a irmã mais velha tenta ensinar a irmã mais nova a como caminhar de maneira elegante. Irene, por sua vez, é vista por nós através de um dossel de cama, enquanto provoca fazendo mímica de cigarro e é constantemente repreendida por sua irmã. É o caso também dos planos onde filma-se a branca e iluminada sala de jantar vista do corredor escuro, enquanto a mãe das três filhas ensina bons costumes às três e Irene sempre sai como a mais desajustada, a que não aguenta esperar pelo pai que está na casa da outra família, que conta histórias para espantar o tédio, que é constantemente corrigida. 

As Duas Irenes é uma surpresa e tanto para um cinema que procura constantemente seu rumo, qual linguagem deve seguir, se atende à uma indústria de gênero ou se tenta competir com os circuitos alternativos e suas temáticas de cunho social e formalismo radical. Aqui há um típico conflito a ser carregado pelo resto da trama, mas seu desenvolvimento é muito mais observacional, testemunhando pequenas angústias e conquistas da rotina que preenchem uma situação inusitada. Um minimalismo para alcançar grandes mudanças, de forma que no final a história nos levou para outro lugar e, imersos naquela rotina, mal nos apercebemos disso.

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