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Críticas

Cineplayers

A dificuldade de um modesto suspense.

7,0

As Duas Faces de Janeiro é o tipo de filme que não busca seu estilo através de imagens, uma montagem sagaz ou mesmo de sua identidade sonora. O que mais chama a atenção neste thriller é algo muito mais abrangente que um senso estético particular. Basta notar a ocorrência de críticas negativas ao caminhar lento da narrativa para entender que a trama, firmada em personagens e suas relações, é de algum modo deslocada no tempo, e portanto mais representativa de uma época do gênero do que de uma individualidade. É sintomático que a proposta esteja em desuso a ponto de causar enfado, mas não deixa de ser surpreendente. Esta é, afinal, a adaptação que se poderia esperar de um romance produzido no início dos anos 1960, com a memória ainda fresca de filmes como O Homem que Sabia Demais, O Grande Golpe e Um Corpo Que Cai.

Claro que as comparações com grandes suspenses não são saudáveis para uma humilde produção recente de um cineasta estreante. Por outro lado, é interessante que o roteirista tornado diretor Hossein Amini tenha escolhido adaptar a tão prestigiada escritora Patricia Highsmith. É com uma voz suave, alguns diriam até hesitante, que Amini assume a direção, como que num reconhecimento do peso da obra original, mesmo sem entrar no mérito da fidelidade ao livro. Entretanto, essa escolha de privilegiar os elementos “textuais” do filme não passa a impressão de um artista inseguro, confiante apenas ou principalmente no ofício com o qual tem experiência. Antes a decisão soa firme, pois avessa a subterfúgios audiovisuais que tanto pipocam em enlatados protagonizados por Liam Neeson ou até mesmo em outros gêneros – especialmente se Danny Boyle aparece nos créditos.

O andar da trama é premeditadamente lento, mesmo quando os personagens se veem forçados a agir num átimo. Ao longo da jornada do agiota Chester (Viggo Mortensen), de sua esposa Colette (Kirsten Dunst) e do jovem guia turístico Rydal (Oscar Isaac), há de fato belas imagens, mas poucas realmente chamam atenção para si. A montagem, de forma similar, não é mais inventiva do que eficiente, encaminhando a narrativa cinematográfica e a singela decupagem de forma bastante intuitiva. Talvez o elemento mais chamativo, e apenas de quando em quando, seja a trilha sonora de Alberto Iglesias, uma das mais belas de 2014.

Embora pareça se destacar, as composições operam como um desdobramento do projeto estético de Amini: o estilo delicado de Iglesias, mesmo que reconhecível, emerge nos moldes de uma música típica para suspense. Trata-se, no entanto, de uma espécie de inversão. O filme não é um estudo de personagens tornado thriller, mas sim um thriller tornado estudo de personagens. É o gênero – essa embalagem autodescritiva – que é pregresso, e são suas regras que o cineasta (incorporando, claro, Highsmith) manuseia para deitar seu foco no triângulo afetivo de Chester, Collette e Rydal. Por isso que a presença deste último na trama segue a máxima do “sem esta decisão, não haveria filme”, mas é motivada por razões profunda e turbulentamente pessoais. O personagem de fato segue a cartilha desse tipo de história, mas a subverte, pois é muito mais que apenas conveniente.

Por outro lado, o roteiro não raro toma caminhos oportunos demais, normalmente para fabricar novas tensões que aproximem a eventuais resultados trágicos. O que tira mesmo a força de alguns conflitos é sua crueza. Certas situações isoladas têm a serventia única de enveredar para impasses cada vez mais insolúveis, sem agregar algo aos personagens nem instigar com set pieces interessantes, presentes nos thrillers dos anos 1950 de Hitchcock ou Kubrick. Outra comparação, desta vez um pouco mais indireta, é com O Homem Mais Procurado, outro longa de 2014 que adapta um reconhecido autor de suspense. Novamente, não é algo favorável à obra de Amini, já que esta não tem a profundidade ética nem a dureza calculista do ótimo filme de Anton Corbijn. O que os dois têm em comum é sua atenção às idiossincrasias de personagens envolvidos em problemas muito maiores que seus sentimentos.

O próprio estopim da trama, como já dito, é o envolvimento de Rydal, um homem de pequenos crimes oportunistas, com pessoas que acabou de conhecer. É a semelhança de Chester com o pai de Rydal, e em menor grau o interesse casual do jovem por Colette, que o faz embarcar no arriscado imbróglio. Além disso, o que propulsiona a narrativa de forma mais envolvente e interessante, por sua relativa banalidade, é o intenso ciúme de Chester. Uma vez que o roteiro não revela muito sobre o passado do casal, fica apenas subentendido o motivo para toda essa insegurança, enquanto breves gestos e falas sugerem que o homem mantém esses medos em xeque com os bens materiais que pode prover a Colette. Ou seja, o bracelete de Ouroboros que ele dá à esposa é a representação perfeita do círculo vicioso do dinheiro na vida do personagem.

Este é uma das simbologias mais belas do filme, junto, talvez, da figura paterna de Chester. Neste caso, porém, o filme incorre em explicações demais, inclusive falas e diálogos que abordam de forma direta a questão. Mesmo assim, não há cena que o trio principal de intérpretes não eleve acima de qualquer deslize ou escolha desinteressante. Se Dunst não tem uma personagem muito rica, não é por falta de seus esforços, já que a atriz se entrega ao turbilhão de emoções de Colette e ocasionalmente evoca as expressivas estrelas dos meados do século passado. Mortensen, por sua vez, se faz valer de sua experiência com tipos escusos para construir uma figura simpática e ao mesmo tempo dotada de uma amoralidade quase evidente – ainda que longe de absoluta.

No entanto, é Isaac que carrega a caracterização mais potente do filme. Ele é capaz de mostrar a segurança de um indivíduo que teve de se estabelecer por conta própria e o descaramento necessário para sobreviver de pequenos crimes rotineiros. Ao mesmo tempo, há uma espécie de senso de justiça combinado com autopreservação que o torna difícil de ler. Ele é temerário demais para ser um simples oportunista, mas reticente demais para ser um herói. É um atestado de excelência notável que o ator englobe tanto o temor de Rydal quanto sua confusa ilusão paterna projetada em Chester, além de sua afeição por Colette, ainda breve demais para se tornar paixão manifesta. No entanto, apenas uma parte do breve trabalho de Isaac (especialmente Drive e Inside Llewyn Davis) mostra com clareza que seu talento não é uma novidade tão recente.

Com a proposta arriscada de Hossein Amini, As Duas Faces de Janeiro pode causar alguma estranheza por seu estilo brando e sua atenção tão focada nos personagens. Por outro lado, um diretor, estreante ou não, que deixa as vozes de seus personagens ressoarem acima de sua individualidade como artista é no mínimo um diretor digno de atenção.

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