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Críticas

Cineplayers

Mesa redonda e cerveja gelada.

7,0

Para comentar de forma segura qualquer assunto que possa surgir sobre Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, 1996), é saudável falar na autonomia de Robert Rodriguez e, portanto, de que se trata de algo predominantemente seu. Porém, não podemos ser ingênuos ao ponto de acreditar que a marca de um tal de Quentin Tarantino não recebe evidência, e então entra o que talvez represente o maior trunfo do filme: a proximidade entre dois artistas de estilos extremamente similares, ao ponto de poder deixar o espectador confuso ao tentar dissociar até que marcador os passos de cada um vai – aquele plano em primeira pessoa partindo do porta malas de um carro jamais viria de forma pura das mãos do cineasta texano. A manifestação do espectador louco por distinguir as assinaturas de duas personalidades fortes dentro de um mesmo ambiente irá tocar nas entrelinhas, mas o que há de mais importante na batida final de Um Drink no Inferno está no que há de mais evidente; basicamente, o que existe é o convite para testemunhar ações de diálogo. São duas pessoas - sedentas por formas abrangentes de cinema e de cultura popular - reunidas em uma mesa de bar e conversando em colaboração mútua, mas deixando claro que a câmera está sob o controle de uma delas.

Se existe uma coisa que Um Drink no Inferno não pode ser acusado é de ser um filme previsível ou até mesmo irresponsável. O trabalho em si parece ser elaborado por base da construção e da ruptura da própria narrativa; assim que abre, temos um belo exemplar desse elemento na cena do mercado. Aliás, algo muito curioso, um filme sendo aberto já com um elemento surpresa engatado: se trata do primeiro contato, a primeira impressão que será passada e que permanecerá até o final da narrativa. O momento é emblemático não apenas por quebrar as nossas expectativas e por desenhar muito do rumo com que a coisa irá tomar, mas acima de tudo por nos apresentar os principais responsáveis por qualquer bizarrice subsequente passada em tela: George Clooney e Quentin Tarantino, encabeçando o elenco. Assim que também passamos a conhecer Juliette Lewis como mocinha e Harvey Keitel como um religioso, personagens que demonstram valores mas que possuem atos duvidosos (a desconstrução de conceitos também é algo importante no pacote como um todo – um sanguinário criminoso que se transforma no mocinho carismático, um homem de fé que cria o símbolo da cruz entrelaçando duas armas de fogo [o uso de convenções para arrancar reações inesperadas – seja no choque, no riso em reação ao humor etc.] e por aí vai), fica meio difícil não crer que essa natureza seja algo em comum a todos ali.

A temática vampiresca é do conhecimento geral; o que entra em choque com isso até certo ponto é a dúvida de como isso será trabalhado, e quando. Até pelo menos a metade da coisa, o que podemos notar é uma espécie de filme de estrada com direito a uma canalhice muito particular à visão de seu autor (um humor estranhamente histérico, trilha sonora e fotografia que se completam ao contextualizar a sua marca dotada de fortes influências latinas sobre a cultura de seu país etc.), este que nos coloca a testemunhar uma série de situações que levanta dúvidas quanto aos limites a que aqueles personagens estão sendo submetidos, e de que forma isso irá estourar na nossa cara.

Acontece, então, o principal rompimento: a mesa com as bebidas surge como quem quer nada, mas entrega de cara diversas pistas para que fiquemos atentos ao fato de que estamos finalmente no momento de entrega total da obra de Rodriguez à sua fartura: Tom Savini sob a pele de um estranho conhecido como Sex Machine, o grande Fred Williamson como um sobrevivente da Guerra do Vietnã, o carismático/mal-encarado Danny Trejo sob a pele de um barman etc. Esse é o momento-chave de Um Drink no Inferno, é o tão aguardado momento que Robert Rodriguez reservou para a sua cartada especial; não, definitivamente não se trata de um filme irresponsável: o homem usa e abusa de tantas referências (lembranças também ao texto escrito – diálogos, sobretudo) que somente pelo fato de não ter caído no mal da impessoalidade e do “tietismo” de fã isto aqui se torna algo incomum – e isso porque, somente para citar por alto, viajamos de Howard Hawks (Onde Começa o Inferno [Rio Bravo, 1959]) a John Carpenter (Assalto à 13ª DP [Assault on Precinct 13, 1976]). O que mais importa é a beleza pura e simples de se filmar o extraordinário – coisa de quem viu, sobretudo, muito cinema de rua e ficou abobalhado com a possibilidade de fazer o mesmo. Mesmo que os personagens recebam certa atenção quanto à questão do passado, fica evidente que esse interesse se dá mais como uma forma de contextualizá-los no presente; tudo termina soando como um processo para determinada finalidade, com os meios servindo apenas como uma forma de bengala.

São duas fortes personalidades em uma manifestação de paixão pelo que é popular e pelo que é torto, uma busca por explorar o infinito do que pode aparentar ser simples – na verdade, é apenas o marginalizado recebendo revisão, com um novo juízo de valor sendo atribuído (exemplificado em Fred Williamson, filmado com um respeito lindo; o homem pouco fala, logo some, mas sempre é exibido como uma figura gigantesca). É uma obra digna de muito respeito, além de ser respeitadora: o tão conhecido artifício de filme de gênero está aqui como uma declaração de amor ao Cinema – não importa se você aprecia ou não o trabalho desses caras; não há como negar a vontade e a paixão que depositam no que fazem. Estamos diante de uma das faces dos anos 90 e a sua retomada do cinema independente; isso já diz muita coisa.

Comentários (5)

Rodrigo Cunha | quinta-feira, 02 de Julho de 2015 - 17:32

2015 tá sendo o ano do CP voltar a falar de filmes famosos que estavam sem crítica. :)

Eduardo da Conceição | quinta-feira, 02 de Julho de 2015 - 19:07

Sempre achei engraçado como esse e Fargo e esse possuam várias citações a Psicose (além da estrutura parecida no roteiro).

Raphael da Silveira Leite Miguel | sexta-feira, 03 de Julho de 2015 - 01:00

Mais uma ótima crítica e esses clássicos merecem mesmo cada vez mais críticas.

Essa mistura de Tarantino com Rodriguez até que ficou boa, mas prefiro cada um trabalhando à sua forma separadamente. Daquele exagero todo da parte da boate/bar, me lembrei de como o Kung Fury se inspirou em algo semelhante.

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