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Críticas

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História de amor com discutível conotação política, vai além de um filme colossal: Doutor Jivago é a síntese do cinema de um grande diretor.

10,0

Para Stanley Kubrick, era um dos três únicos diretores os quais assistir a todos os filmes era mais que um dever; para Steven Spielberg, um dos maiores diretores que o cinema já viu, ele próprio revê alguns de seus clássicos toda vez antes de voltar à regência; até para o crítico brasileiro Rubens Ewald Filho, seu nome é sinônimo de tudo o que há de melhor e de mais qualidade no cinema, em todos os sentidos; para a publicação britânica Sight & Sound (a pioneira em listas), é um dos dez maiores diretores da história do cinema. Este é David Lean – contudo, seria de uma tremenda ingenuidade crer que ele é uma unanimidade: longe disso, distante de ser uma referência cool, cult, tampouco avant-garde, até mesmo pelo caráter popular de seus filmes, Lean entrou para história sobretudo pelo seu rigor de esteta, de artífice da imagem, da fotografia, da bela composição de plano em seus grandes épicos que lhe renderam fama. Evidentemente, não trata-se apenas isso.

Doutor Jivago, seu longa mais popular, filme que arrastou multidões aos cinemas no longínquo ano de 1966, faz uma panorama da Rússia/URSS do início do séc. XX até os anos 30, passando pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, a revolução bolchevique de 1917, a guerra civil, eventos apresentados como contexto opressor na vida de Yuri Jivago (Omar Sharif), russo dividido entre a arte (música e poesia) e a medicina, entre a esposa Tonya (Geraldine Chaplin) e a amante e grande paixão de sua vida, Lara (Julie Christie), com quem viverá um grande “amor nos tempos de guerra”, bem à moda dos clássicos  ... E o Vento Levou e Casablanca. A trama, no entanto, é bem mais complexa do que esta brevíssima sinopse ilustra, com sua enorme gama de personagens e com o seu discutido aspecto anticomunista.

Convém lembrar que o filme é a adaptação do único romance do grande poeta russo Boris Pasternak – um “romance de poeta”, como já disse Mario Vargas Llosa, e que qualquer cunho político do filme inevitavelmente remete à obra original. Portanto, vamos momentaneamente a ela. O fato de os bolcheviques saírem do livro (e posteriormente do filme) com a imagem bastante depreciada permite concluir que o foco de Pastenak em Doutor Jivago é o comunismo? Sobre isso, Llosa ainda diria em seu ensaio “A Verdade das Mentiras”, que o tema central de Doutor Jivago é a fragilidade do indivíduo quando se vê no redemoinho de um grande acontecimento. O livro é claramente autobiográfico, pois Pasternak sofreu na pele com o regime, o livro continuou proibido no país mesmo após ganhar o Nobel – isso sem contar que Jivago é seu alterego, seja por viver dividido entre duas mulheres, seja pelo seu gosto pela poesia e música (Pasternak era também pianista). O crítico George Steiner, em “Linguagem e Silêncio”, é consonante com o tom de Llosa, mas vai além: acredita que o alvo é mesmo o regime comunista. Para ele, Pasternak compôs uma denúncia contra o desprezo soviético pela vida individual que seus colegas tinham insinuado na maneira trágica de suas mortes. E até Ítalo Calvino deu seus palpites sobre Doutor Jivago, em artigo dos anos 50 agora no volume “Por que ler os clássicos”, em que argumenta que Pasternak parte do mundo místico-humanitário da cultura russa pré-revolucionária para condenar não só o marxismo, mas a própria política como principal teste dos valores da humanidade. Nesse sentido, o livro (e por consequência o filme) trariam de volta o discurso sobre a violência revolucionária e atribui a ela o posterior enrijecimento burocrático e ideológico.

Já o filme, transposição fiel que rendeu o Oscar de roteiro adaptado, também abre discussão semelhante. Ao passo que o espectador se envolve com a história de amor, cativante tanto graças à habilidade de Lean quanto ao carisma de Sharif e beleza de Christie, fica difícil não se posicionar contra o regime bolchevique, uma vez que o contexto político ocupa o lugar de vilão no romance dos heróis – portanto, um filme anticomunista. Delicado fazer uma afirmação categórica quanto a isso, mas o aspecto político do filme não poderia (nem deveria) ser deixado de lado em qualquer resenha sobre este longa. Pessoalmente, acredito que Doutor Jivago não está nem para o bolchevismo de O Encouraçado Potemkin, tampouco para o czarismo de Arca Russa, justamente por ser um filme de David Lean: a intenção primordial era a de se fazer, simplesmente, uma grande filme, contando uma grande história.

Nesse sentido, Doutor Jivago é, essencialmente, um filme grandioso. Com um orçamento assombroso para a época de US$15 milhões, desde o início pairava a pretensão de fazer um filme colossal, uma arrasa-quarteirão na acepção do termo. Para tanto, foi necessário reunir esforços em escala mundial. Como um prenúncio das produções globais atuais, que contam com integrantes de vários continentes, como ocorreu em Ensaio sobre a Cegueira, Doutor Jivago foi dirigido por Lean (inglês), é produto do estúdio norte-americano MGM, rodado em 232 dias na Espanha, produzido por Carlo Ponti, italiano casado com Sophia Lauren (queria ela no papel de Lara). A trilha ficou a cargo do francês Maurice Jarre, que compôs o inesquecível “Tema de Lara”, mega-hit na época que hoje deve soar mais como um clássico natalino devido à melodia e ao timbre peculiar da balalaika (típico instrumento musical russo). Tão internacional, o elenco contava com uma diversidade de nacionalidades rara de ser ver – o único ator americano no filme, que interpretou o antagonista Komarovski, era Rod Steiger, o irmão de Marlon Brando em Sindicato de Ladrões, que naquela cena no banco de trás do carro fez um dos momentos mais relembrados do cinema, pela sua representatividade de estilo de atuação. Omar Sharif, revelado ao mundo como um beduíno em Lawrence da Arábia, vive aqui um protagonista russo, sendo que o ator, alçado ao status de estrela do cinema mundial, era na verdade um egípcio! Julie Christie nasceu na Índia. Geraldine Chaplin, filha do próprio, fez sua estreia no cinema em um papel importante. Até o polonês Klaus Kinski, que posteriormente viria a ser a estrela dos filmes do cineasta alemão Werner Herzog, dando vida ao “Aguirre” e ao “Fitzcarraldo”, ganhou personagem no filme.

Porém, dentro todos os infidáveis aspectos e detalhes a se debater sobre Doutor Jivago, nenhum deles irá chamar mais a atenção do espectador do que ela, simplesmente: a imagem do filme projetado na grande tela. Merecido Oscar de melhor fotografia para Freddie Young, são de embasbacar as composições, a força pictórica de cada quadro, de cada frame. Os imensos planos-gerais, tomadas panorâmicas que apresentam as sequências são de grande carga simbólica, representam a vastidão inerte de uma URSS que paulatinamente consome e distancia o amor impossível entre Jivago e Lara. As infinitas viagens de trem, os desoladores campos de inverno que separam os protagonistas, como na cena em que Jivago precisa atravessar um “continente” para ter o seu breve encontro com Lara em uma mansão abandonada.

David Lean ficou marcado por sua rara habilidade imagética, um mestre na técnica de filmar e de fotografar que foi seminal para diretores-seguidores como George Lucas, Steven Spielberg e James Cameron, que souberam usar sua cartilha para imprimirem ao mundo os seus sucessos voltados à multidão. Entretanto, Lean conseguiu alcançar ao longo de sua carreira a estranha e rara combinação de qualidade e apelo popular, em gêneros aparentemente díspares. No início de sua carreira, ainda como um protegido, um pupilo do artista e dramaturgo inglês Noel Coward, ganhou vasta experiência ao adaptar grande literatura do alto cânone, transpondo para as telas Charles Dickens (Oliver Twist e Grandes Esperanças). Nessa mesma época, curiosamente em uma pequena produção, fez uma belíssima adaptação de uma peça de um ato só Coward, chamada Still Life, que é sem dúvida um dos melhores filmes de amor do cinema, Desencanto (Brief Encounter). Um romance memorável, assim como em Doutor Jivago, uma perfeita combinação “amor + música”, embalado por um tema, o “Concerto para piano nº 2”, de Rachmaninoff – que nada mais é do que a versão erudita da música popular em que anos mais tarde foi convertida, na chamada “All By Myself”, que ganhou versão de Celine Dion a Sheryl Crow.

Lean também fez filmes de guerra (A Ponto de Rio Kwai), épicos com imagens esplendorosas (Lawrence da Arábia), filmou paisagens exóticas aos ocidentais (Passagem para a Índia). Soube reger a variedade de elementos em todos os filmes, bem como cada filme é uma nota na tessitura de sua obra. Doutor Jivago não é, de modo algum, um filme perfeito – e não são poucos seus detratores, que comumente atacam uma possível conotação telenovelesca por ser um melodrama (se ser melodrama fosse necessariamente ruim, o que seria de Douglas Sirk?), ou por sua possível grandiloquência, ou mesmo caráter anticomunista (e se fosse comunista, seria bom?). Mas as virtudes e feitos alcançados com Doutor Jivago extrapolam quaisquer retaliações. E se cinéfilo reparar, o filme é a súmula da carreira de David Lean, o longa onde, conscientemente ou não, conseguiu combinar num só filme todas as características e temas de sua obra. De todos os seus filmes, está tudo ali condensado em Doutor Jivago: o amor, a guerra, a paisagem, a fotografia, a música, a poesia, a literatura, a epopeia, mas principalmente a maestria de um gênio do cinema – em suma, um clássico.

Comentários (1)

Guilherme Rodrigues | quarta-feira, 08 de Abril de 2020 - 02:20

Uma das melhores críticas aqui do site. Só fiquei com uma ressalva no ponto "a intenção primordial era a de se fazer, simplesmente, uma grande filme, contando uma grande história." Lean parece que continua sua crítica contra todo tipo de guerra/violência como fez no seu filme anterior. Me parece ser um pacifista convicto à lá Erasmo que dizia que toda guerra era burra/irracional, por isso que acho que ele não é tão neutro assim buscando simplesmente fazer um grande filme com uma grande história, afinal de contas somos todos seres políticos e nunca dissociados dela.

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