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Críticas

Cineplayers

Um drama urbano que deu a Fernando Meirelles background para, mais tarde, realizar Cidade de Deus.

8,0

Antes de dirigir a obra-prima  Cidade de Deus, o diretor Fernando Meirelles, ao lado de Nando Olival, fez este filme menor, mas que recorre aos mesmos temas de sua obra máxima, como a pobreza na vida desmazelada das periferias de uma grande cidade (aqui, a gigantesca e bagunçada São Paulo). Em Domésticas, Meirelles nos apresenta o mundo confuso e problemático das empregadas domésticas, com um estilo narrativo intenso, montagem caprichada (certamente foi uma grande escola para a direção de Cidade de Deus, um ano mais tarde), e personagens cativantes.

Domésticas coloca em foco um grupo de meia dúzia de empregadas, e narra a vida delas durante o serviço na casa dos patrões e fora de lá também. O mais interessante é que, durante todo o filme, não vemos nenhum patrão, ou seja, o tempo todo você só conhece um lado da moeda desse relacionamento. Pode parecer injusto (e realmente: os patrões não têm chance de se defenderem das constantes reclamações e dos xingamentos das empregadas), mas pelo menos assim o filme torna-se muito mais centrado e os personagens são muito mais desenvolvidos. Novamente, o diretor prova que sabe desenvolver várias histórias ao mesmo tempo, dando importância e tempo iguais a cada uma das empregadas retratadas no filme. Fica então difícil escolher uma personagem favorita, até porque todas elas, em termos de interpretação, estão muito bem, e todas as histórias são, no mínimo, divertidas e interessantes, mesmo que brutalmente reais, embora não num nível violento.

Ao final do filme, é fácil se identificar com essas personagens tão ignorantes (mas é bom deixar claro que isso não acontece por opção, e sim por falta dela) em quase todos os assuntos, mas com uma experiência de vida que poucos doutores poderiam sonhar em ter. Algumas histórias puxam para a comédia, como a da empregada Roxane (a atriz Graziela Moretto, a jornalista de Cidade de Deus), que possui um sotaque irritante, e ao mesmo tempo engraçadíssimo; outras histórias são bem tristes, quase emocionantes, como a da empregada cuja filha fugiu de casa, e agora procura desesperadamente pela mesma nas ruas caóticas de São Paulo.

Há ainda algumas histórias menores, de homens, como a dupla de amigos que tenta se arranjar na vida ora em trabalhos honestos e ora em assaltos frustrados em ônibus. Enfim, de um jeito ou de outro, as histórias possuem todas um entrelaçamento entre elas, às vezes sutil, outras bem direto, o que fortalece ainda mais todos os personagens e as situações encontradas no filme. Meirelles, assim, mostra-se um exímio diretor de personagens, talvez ainda melhor do que de situações.

O filme não é em nenhum momento violento, mesmo que trate de temas como traição, roubo e prostituição. Bem ao contrário, Meirelles e seu grupo de roteiristas (o filme é uma adaptação de uma peça teatral) deram ao filme um tom bem cômico, divertido, que somente às vezes é passado para o drama, sempre eficientemente e sem manipulação do espectador, na maioria das vezes.

Agora, foi também um grande prazer ver o filme que, certamente, “treinou” Meirelles para o magnífico trabalho técnico que vimos em 2002 com Cidade de Deus. Obviamente, por ser um filme menor, principalmente em orçamento, Domésticas não é tão ousado, mas mostra uma diferenciação em termos de edição e fotografia que definem o diretor como a atual grande promessa do cinema nacional. Cortes ousados, ângulos originais, montagem dinâmica (como a cena perto do final, que mostra de uma só vez o destino de vários personagens após um deles ter faltado a um compromisso importante)... tudo isso faz parte do arsenal de Meirelles em Domésticas.

Talvez a única técnica que realmente não gostei foi a narração dos personagens para a câmera (que foi feita por Babenco em Carandiru também), falando sobre seus problemas e sonhos. Isso dá ao filme um tom documentarista desnecessário, já que afinal são personagens ficcionais (embora certamente haja no Brasil milhares de empregadas domésticas que se pareçam com as apresentadas no filme). Como curiosidade, o diretor filmou várias dessas cenas para Cidade de Deus, mas resolveu, felizmente, deixá-las de fora na montagem final do filme.

O filme conta também com uma trilha sonora praticamente perfeita, com um uso ótimo da Música Popular Brasileira para dar emoção e suporte em momentos importantes da história. Creio que Domésticas seja um filme obrigatório para quem adora Cidade de Deus, até por que o seu tema principal é o mesmo: os pobres tentando sobreviver num mundo desigual e injusto. Se isso é visto pelos olhos de simples empregadas domésticas ou pelos olhos de um dos maiores traficantes que já existiram no Rio de Janeiro, é um mero detalhe.

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