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Críticas

Cineplayers

A ascensão do animal.

8,5
Ano passado os diretores Alexandre Baxter e Felipe Fernandes apresentaram na Mostra Tiradentes o longa Eu Não Sou Daqui (mais um daqueles crimes do cinema nacional, sem estrear até hoje), estrelado por Rômulo Braga e Rui Resende. Lá, o protagonista, encontrado na rua e acolhido por um técnico de futebol de várzea, passa por um claro processo de transformação aos olhos do público. O homem na verdade nunca foi homem, mas um cão - e rememorar o filme é ter a certeza de que todas as dicas são dadas a esse respeito. A representação canina nas relações de micro poder não é uma primazia do nosso cinema e nem estreou por lá, mas é complexo observar que 1 ano e meio depois o italiano Matteo Garrone propõe algo tão parecido quanto menos poético.

A violência no cinema de Garrone é conhecida desde Gomorra, filme-sensação que partiu da observação real sobre a moderna máfia italiana e se desdobrou numa série de TV, transformando a carreira de seu diretor, e o novo longa se distancia desse justamente ao olhar para esse elemento. Enquanto no filme de 2008 a violência é mais pontual porém eficaz, em Dogman uma espécie de conto moral se desenha e com isso a violência é mais gráfica, contornando a narrativa de maneira mais ampla e significativa, sem nunca deixar de se fazer notar, ainda que nem tudo seja traduzido de maneira sangrenta. As relações se dão num código tácito entre dominador e subjugado, saindo da esfera pessoal até alcançar a social.

Marcello é o foco e vetor do roteiro. Se na primeira metade observamos uma opressão submetida corpo a corpo, da metade em diante temos uma mudança estética no filme aliada à nova forma de abordagem do protagonista, que sai de sua linha esperada para uma abordagem menos defensiva, até se fazer ativo de fato. Como dito no início da análise, é construído aqui um novo viés de subserviência e servidão. Se no longa nacional, o abandono já era justificativa suficiente para compreender o jogo narrativo, aqui a percepção é fugidia. Porque Marcello é tão refém da atenção de Simone? Esses dois personagens se complementam na simbiose doentia que estabelecem, e na primeira metade o 'homem-cachorro' do título poderia ser comparado a um vira-lata promovido, que conseguiu até constituir uma família desarranjada. Logo o vira-lata se transformará em um doberman raivoso, quando todos a sua volta não forem mais que animais ferozes com sede de sua pele.

A interação entre Marcello Fonte e Edoardo Pesce é a tônica do filme, e o roteiro vai saindo de um escopo mais aberto para afunilar exatamente neles. Para tal, Garrone precisava de mais do que dois atores talentosos e carismáticos, mas de uma dupla em confluência total. Enquanto Pesce é uma massa de virulência, cujo rosto e tamanho são uma espécie de conjunto ameaçador, Fonte é a imagem da fragilidade aparente - pequeno, dócil, amoroso, diminuto em altura e ainda mais sensível ao ser filmado ao lado de seu companheiro de cena. Ambos se potencializam e transformam essa alegoria num confronto emocionante de acompanhar, e muitas vezes agoniante, uma experiência de destruir os nervos. Fonte acabou por levar o prêmio de ator em Cannes há 3 meses merecidamente, e a transformação que o personagem sofre da primeira pra segunda parte com certeza foi definidor da distinção.

O que não se pode acusar o filme é acerca do trabalho de Garrone enquanto maestro. Se tinha se enchido de pretensão e feito um filme 'gordo' anteriormente ainda que não sem talento (O Conto dos Contos), aqui um dos poucos representantes de brilho do combalido cinema italiano atual volta a entregar um trabalho bastante acima da média. O trabalho visual do filme é impecável e Garrone retorna fazendo o que de melhor criou como característica e que faz intersecção nos seus trabalhos - a construção espacial. Ele nos leva para aquele ambiente afastado e decadente, aquela praça única onde se passa toda a ação, abandonada e feia, envelhecida. Rapidamente somos arremessados àquele lugar, e tal atmosfera contamina e define nossa relação direta com o filme. A luz do filme a cargo de Nicolai Brüel também faz parte do pacote de excepcionalidade, e que também trafega da primeira para a segunda parte em contraste, saindo de uma atmosfera realista para um tom acinzentado, como a indicar o dilúvio emocional onde estão mergulhados todos aqueles homens, transformados em bichos.

Filme visto em 8 ½ - Festa do Cinema Italiano 

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