8,0
O Olhar de Cinema não poderia ter começado de maneira mais significativa. Em ano de homenagem a Jean Rouch e Djibril Diop Mambéty, a dupla Filipa Reis e João Miller Guerra aparecer revelando sua influência direta de um cinema que esses mestres difundiram é mais que especial. Vindo diretamente do Festival de Rotterdam, a co-produção Portugal e Brasil abre o festival da forma certa: o filme expõe seu conflito, sua trama e suas ambições, espera o público ligar suas sinapses, e parte para avançar terreno em outras vias. É o filme perfeito para dar o pontapé em uma reunião de filmes tão de vanguarda quanto esses, onde tudo parece se encaminhar para o lugar esperado. Aí o filme abre suas intenções e as costuras ficam exatamente no centro da narrativa.
Os temas abordados no longa talvez não sejam os mais inéditos de qualquer cinematografia (a busca por si mesmo, a conexão do homem com seu lugar de origem, os elos que a sociedade atual cria com o passado, conexões familiares perdidas), mas o molho diferenciado se dê pela união entre esses elementos, tratados todos com respeito e cuidado pelo roteiro e elencado de maneira cadenciada e gradativa, com uma situação determinando seu término para entrar em nova seara, até termos um caleidoscópio de imagens e sensações por igual.
A influência dos homenageados está impressa, mas ao mesmo tempo conseguimos observar a evolução narrativa de quem bebeu em inúmeras outras fontes e se tornou algo desprendido de obrigações formais. O longa parte dessas influências atemporais para criar seus próprios vínculos filmicos e poder também inspirar e mover o cinema para além. O material tratado de maneira espiral por Filipa e João permite conectar o espectador com o rito de passagem com que o protagonista Djon vai lentamente acessando, saindo de si para tornar-se Miguel, com direito a uma passagem de bastão tão inesperada quanto simbólica.
Djon é um homem que sai do lugar de origem e da zona de conforto marginal para descobrir uma transcendência insuspeita, através de um encontro fortuito na rua, que o leva de Portugal à Cidade do Cabo e de repente lhe dá o norte que lhe escapava, e do qual ele estava destinado a se tornar. Observar essa ânsia brotar de maneira natural até alcançar o lugar do inescapável é um dos fascínios de um longa que trata de criar um processo de imersão dentro e fora da tela.
Aos poucos, o sujeito Djon vai se conectando ao redor, passando pelo processo de metamorfose que seu entorno provoca, a volta literal às raízes, o reencontro com um eu desconhecido e não sabido, vai permitindo a chegada de Miguel, esse ser desconectado do todo que vai tendo a real percepção do seu passado para desconstruir o seu presente. A busca pelas imagens empreendida pela direção rompe com a estrutura inicial exatamente como a personagem, criando uma alegoria perfeita sobre o processo de inclusão do homem com o espaço que ele ocupa, e a modificação pelo mesmo.
Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba
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