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Diabo Mora Aqui, O

(O Diabo Mora Aqui, 2015)
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Críticas

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O Diabo Mora Aqui e o folk horror brasileiro

7,0

A história do gênero de horror no Brasil é complicada, não apenas por sua lamentável insipidez como pelo hibridismo que dominou os anos 1970 por conta das merecidamente cultuadas pornochanchadas. O primeiro horror pós Zé do Caixão sofreu com o viralatismo da crítica impiedosa, que não entendia cinema de gênero e rebaixava tudo a porcaria, desincentivando novos criadores do gênero, em um ciclo pra lá de vicioso. Uma pena. Mas, mesmo assim, o terror nacional insistiu em resistir, criando como base histórias do folclore nacional, lendas urbanas e rurais.

Quando o gótico começou seu caminho no Brasil dos anos 1950, ele foi se esconder no mundo rural, nas antigas fazendas de café. Caiçara (Adolfo Celi, 1950), As Filhas Do Fogo (Walter Hugo Khouri, 1978) e O Anjo da Noite (Walter Hugo Khouri, 1974) evocam o ruralismo, em grande parte das vezes deslocando o elemento horrífico para o passado escravocrata. As religiões de matriz africana compunham o elemento mágico, quase sempre com viés negativo, evidenciando o racismo e as relações de poder. De fato, esse gótico tardio meio louco ajudou a criar o folk horror brasileiro que, de tanto não ser pensado, é como se não existisse (tentei pesquisar no Google).

O folk horror, ou terror rural em livre tradução, é conhecido por obras ambientadas no mundo rural, com sua própria moralidade, misticismo e uma esfera mítica em torno da natureza, que tem na obra O Homem de Palha (The Wicker Man, 1973, de Robin Hardy) sua forma mais emblemática e em Midsommar: O Mal não Espera a Noite (Midsommar, 2019, de Ari Aster) um exemplo recente. No caso do Brasil, esse horror rural irá, com frequência, remeter à escravidão, criando por vezes a figura do escravo que quer se vingar do sofrimento a ele afligido, da família de brancos amaldiçoados e rituais que misturam religião, paganismo e satanismo.          

O Diabo Mora Aqui (Rodrigo Gasparini, Dante Vescio, 2015) é um bom exemplo da continuidade e referência histórica do folk horror brasileiro. Em uma fazenda no interior de São Paulo, quatro jovens brancos decidem recriar um ritual ancestral que envolve uma maldição feita por uma rainha escravizada contra seu “senhor”, o torpe Barão do Mel, para se vingar da morte de seu filho, Bento. Esse ritual era refeito anualmente pelos descendentes dos escravos que mataram o Barão, com a presença de Bento zumbificado (uma referência ao vodu?). Com a morte do último descendente, cabe a seus filhos Luciano e Sebastião darem continuidade ao ritual. Os dois grupos acabam entrando em um embate que assume contornos violentos.

Fica difícil apontar problemas técnicos e deficiências ao filme de Gasparini e Vescio sabendo que o mesmo custou módicos 200 mil reais e sem apoio de editais. Mas, para além de suas dificuldades, os diretores entregam um terror consciente das convenções do gênero, crítico e bem executado. O argumento e roteiro - de M.M. Izidoro, Guilherme Aranha e Rafael Baliú - funcionam ao deixar a trama “redonda”, e mesmo que não desenvolva bem os personagens ou explique melhor o funcionamento do ritual, o que acaba por deixar o material um pouco confuso. A fotografia de Kaue Zilli deixa um pouco a desejar pela luz soturna, mas sustenta uma identidade visual de movimento contínuo e planos fechados. Como boa parte desses problemas podem ter sido uma consequência do baixo orçamento, O Diabo Mora Aqui demonstra um domínio de direção necessário para o gênero de horror, apresentando um “produto final” refinado, com atuações razoáveis.          

O filme de Gasparini e Vescio vem acrescentar ao folk horror brasileiro mais uma camada de leitura de um passado violento. Embora a obra não problematize as temáticas raciais, acaba ressaltando esse passado de roubo e silenciamento. Em uma leitura simbólica, os brancos tentam se apropriar de um rito que não lhes pertence e são punidos ao libertarem o espírito errado. Ponto para o filme.

Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween

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