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Críticas

Cineplayers

A delicadeza antes do ringue.

8,0
Alguns filmes estão condenados a justificar as condições das estruturas de gênero onde foram inseridos, e nem sempre um cineasta jovem sabe como resolver algumas questões, ou mesmo tem qualquer interesse em resolver; na maior parte das vezes, quando se decide arriscar em terreno conhecido, a escolha geralmente é por abraçar o lugar comum e apenas desfilar os códigos. O filme de esporte por exemplo, todos já vimos um: o azarão - vitória - derrota - interesse romântico - vitória - desilusão amorosa - treino - vitória final + reaproximação romântica, bagunce esses elementos e terá seu típico exemplar. Lógico que isso não é uma tacada certa, e quando o padrão se quebra, temos o nascimento de um 'clássico', como de alguma forma o é Menina de Ouro, de Clint Eastwood, que tem um olhar sobre o melodrama clássico, que também é um ingrediente que pode fazer parte da estrutura final. 

O cineasta Juho Kuosmanem estreia em longas não apenas tentando também ele absorver o melhor do melodrama em seu filme, como resolve contar um história real e famosa de um conterrâneo finlandês para desconstruir um pouco o manual dos gêneros do quesito 'filme de esporte'. Pois Kuosmanem transforma seu risco em vantagem às custas de talento, sensibilidade e uma visão ultra romântica de um tempo, que ele deixa claro em suas escolhas que está suspenso e pronto para ser rememorado de forma bucólica e delicada. Literalmente ninguém me preparou para acompanhar essa história contada dessa forma, em formato de reverência ao passado. Pra isso a escolha da fotografia em preto e branco não poderia ser mais acertada e coerente, que claramente transforma a atmosfera do longa em algo que se assemelha a um sonho... ou simplesmente uma lembrança, um grande pacote de lembranças de momentos bonitos e inesquecíveis. 

O ano é 1962 e Olli Mäki é um boxeador peso-pena finlandês que consegue algo inimaginável, a oportunidade de disputar o título mundial. Tudo que ele precisa fazer aquela temporada é treinar e perder peso, mas durante um casamento familiar Olli conhece Raija, e o que nasce não é exatamente um romance ou uma paixão, não é nada tão entendível e simples assim. Entre Olli e Raija surge uma cumplicidade rara e imediata, uma ligação e um entendimento profundos. Tudo isso é muito mais complexo de elaborar, e esse processo será crucial no período mais importante da vida desse homem, para o bem e para o mal. A veracidade com que essa relação é tratada encontra na ambientação poética cria um bem-vindo ruído na produção, que consegue aos poucos ser ao mesmo tempo naturalista e onírico, com uma construção de personagens tão palpável que as incursões observacionais do cotidiano ao qual o filme se propõem ficam cada vez mais suaves e acertadas, num equilibro que raramente é conseguido no cinema. 

Responsável apenas pela direção, o trabalho de Kuosmanem não seria tão bem sucedido se não houvesse uma confluência tão feliz com o roteiro de Mikko Myllylahti, que investe em contar essa história com a parcimônia que o trabalho se Kuosmanem pedia para sublinhar a placidez de suas cenas. Seja num inocente passeio de bicicleta, seja na captura de insetos em copos de vidro, ou do início de um temporal inesperado onde cada gota importa, com 20 minutos de projeção já sabemos que nada do for visto terá as características gerais de um projeto do tipo, e ele mesmo cria novas capas para se resguardar ao longo do todo. É claro que vez por outra o filme clama por diretrizes típicas, e é nesses espaços que o interesse pela premiada estreia em longas tende a esgarçar. Mas ainda mesmo dentro desses signos, Kuosmanem consegue uma espécie de conexão com a beleza e a simplicidade e esses momentos passam de maneira bem pouco entulhada. Na verdade a extrema delicadeza do todo talvez só seja um problema na hora de retratar o universo específico de Olli, que sabemos geralmente vazar testosterona. Até isso parece receber carinho. 

Obviamente que o trabalho conjunto seria vão se não houvesse um ator de performance tão compenetrada quanto a de Jarkko Lahti, ou se sua química com Oona Airola não fosse tão proeminente. Lahti tem na mão um personagem tão diferente do imaginado e consegue corresponder de maneira surpreendente quase sempre, através de pequenos gestos que definem toda as linhas de Olli. Quando as luzes se acendem a sensação geral é de tamanha unidade que os elementos do lugar comum passam despercebidos dentro do quadro geral. Pensando bem, talvez no final seja o equilibro que dê o toque especial a esse vencedor da Un Certain Regard em Cannes 2016: é de fato um filme de esporte, mas talvez seja dos filmes de esporte mais poéticos já feitos. E não só isso, tem um olhar doce sobre um esporte atrelado a violência sem nenhum interesse de diminuir suas camadas, tem uma humanidade conseguida através de cada close inusitado em objetos e animais, e tem uma visão romântica não apenas sobre a vida como também sobre os hábitos e costumes da sociedade nos anos 60. Aí menos aquela sociedade, naquela Finlândia, desse diretor que parece ter muito ainda a dizer. 

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