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Críticas

Cineplayers

Clássico do cinema novo completa meio século.

10,0

Drama histórico e atemporal, sertanejo e ao mesmo tempo universal, Deus e o Diabo na Terra do Sol transcorre no final dos anos 30, na transição de um Brasil agrário e rural para o urbano e mais desenvolvido (ciclo que seria completado com a continuação O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro [1968]), e as eternas dificuldades em lidar com o atraso que lhe é inerente, mas reflete e só poderia ter sido feito no período de intensas utopias e agitações políticas do começo da década de sessenta. A derrota dessa mesma utopia levaria Glauber Rocha, cronista de seu tempo, a fazer algo semelhante a um desdobramento, essa outra grande reportagem terminal que é Terra em Transe (1967), em torno do cadáver da esquerda agonizante e moribunda, com seus zumbis de um lado e outro num cenário apocalíptico, e a incerteza e pessimismo quanto ao porvir. Filmes condenados a espelharem o Brasil de ontem, hoje e o do futuro.

Como muitos cineastas chegados numa alegoria, Glauber utiliza um formato próximo a do filme de gênero para trabalhar com os seus arquétipos e o drama que se desenvolve na tela. No caso, o filme de western, mas sem fazer uma imitação relativa como as tantas realizadas desde O Cangaceiro (1953), e sim devorando antropofagicamente influências estrangeiras diversas para dar origem a algo genuinamente novo. É um filme de tipos − o camponês que após matar o patrão que o explorava foge com a esposa pela imensidão do deserto rural, o fanático religioso que mais parece uma figura de Cristo, e seus seguidores obcecados, o bandido encarnado na figura do cangaceiro resistente, o cego que acompanha a história como era comum na tragédia grega e nos cordéis nos quais Deus e o Diabo muito bebe, o jagunço a serviço das forças poderosas e de uma elite econômica, mas atravessado por uma crise moral e inquietudes existenciais, mais o coronel, o padre, que aparecem brevemente.

Para nos transpor ao universo do seu relato, Glauber opta por uma estrutura dividida em um prólogo, e duas partes, de cuja dialética resulta em uma síntese. No começo, uma visão aérea do grande sertão como palco da história, ao som da música de Heitor Villa-Lobos que transcorre redonda, equilibrada, mas sugerindo um desequilíbrio que explode em notas maiores no close na cabeça do gado morto, em contraponto ao rosto marcado pelo desamparo do protagonista Manoel (Geraldo Del Rey). As bachianas de Villa-Lobos musicam veementemente o longa, porém as canções declamadas por Sergio Ricardo dão tom e pontuam o filme, comentam e sintetizam os acontecimentos, fazem a narrativa avançar. O aspecto religioso é predominante na primeira metade, com Glauber bastante interessado neste mosaico de crenças que forma o mundo, apontando para o vazio que se constrói em torno de tantas delas, dos rituais, inutilidade e alienação de todo este imaginário místico. O Monte Santo para o qual se dirigem o beato Sebastião (Lídio Reis) e seus seguidores não é muito diferente do que o buscado pelos personagens de um A Montanha Sagrada (The Holy Mountain, 1973), de Jodorowsky. Na segunda metade, ocorre a profanação desse mundo, com o casal Manoel e Rosa (Yoná Magalhães) se juntando ao que restou do bando do cangaceiro Corisco (Othon Bastos), com a explosão de sua violência anárquica, assaltos, estupros, castrações, flagelações e lesbianismo, com as caricias e enlevo entre Rosa e Dada (Sonia dos Humildes), ou quando a primeira se entrega ao marido da outra, Corisco, com aquela câmera a circular genialmente por eles ao som da bachiana. Um mundo não menos violento e bárbaro que o de Sebastião, que também obriga Manoel a cometer autoimolações ao ter que carregar uma pedra por uma longa estrada, ou sacrifícios como o derrame de sangue de bebês inocentes.

A violência é um dos fatores preponderantes em Deus e o Diabo na Terra do Sol, podendo não comover às gerações acostumadas com as tecnologias gráficas de hoje em dia, mas muito também porque ela não foi feita para chocar, no entanto se mantém perturbadora dentro do que se propõe. A sequência mais forte é sem dúvida a que o grupo invade uma residência, batem nos moradores e estupram a mulher diante do marido, que remete a outro passeio brutal que é a cena de abertura de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971). Ainda que a influência para Glauber pareça ter sido a do banquete dos mendigos em Viridiana (idem, 1961), as semelhanças com a introdução do filme de Kubrick, no entanto, são significativas, com o bando de cangaceiros como equivalente no sertão aos drugies na Inglaterra futurista de Clockwork, as roupas e chapéus extravagantes com as mesmas cores nos dois filmes, como se os personagens estivessem fantasiados, e o Corisco interpretado por Othon Bastos tão intenso, enraivecido e alucinado quanto o Alex DeLarge do McDowell. As concepções de cada cena possuem grandes paralelos, numa espécie de coreografia da violência que evolui organicamente em uma dança macabra dos personagens (de maneira mais discreta em Deus e o Diabo, sem dúvida, mas também muito forte), a destruição e violação de objetos tipicamente burgueses no lar (em Deus e o Diabo, o piano na sala, e o bolo e demais detalhes de uma festa que ocorrera na casa; em Clockwork, a derrocada da estante de livros, etc.), e por fim o estupro da mulher pelos lideres Corisco/ DeLarge e a inutilização do marido de maneira cruel (castração/ aleijamento).

Nesse contexto de violência por parte igualmente dos religiosos e do banditismo, surge Antonio das Mortes em suas intervenções na narrativa, com o rancor acumulado àqueles a quem combate, uma figura do anjo exterminador no sertão, matador de cangaceiro e sem religião. A sua indumentária toda escura é típica de muitos dos heróis do western, mas ao contrário de outros tantos que cumprem um papel de vingador, ou de simples mocinhos na narrativa, Antonio das Mortes e sua espingarda é uma espécime aniquiladora de muito da alienação do sertão (o sertão como o mundo, dentro da visão metafísica de um Guimarães Rosa), seja esta a alienação do misticismo, ou a do crime, a dos fora-da-lei. Nem Corisco ou Sebastião representam o mal, mas ambos são consequências da miséria e do atraso, às quais Antonio das Mortes pretende varrer. Há uma contradição em Antonio, pois ele acaba servindo os poderes instituídos locais (o latifúndio, a Igreja), aos quais convém o desaparecimento do cangaço e dos religiosos quando estes ganham força (essa tomada de consciência daria no Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro alguns anos depois), mas no Deus e o Diabo ele é impelido por uma convicção toda própria, não a de ajudar aos poderosos, e sabendo que ele mesmo não é mais que outra consequência desse atraso todo, a sua forma de recalque, e também condenado a desaparecer. Toda a sua dimensão é sintetizada na conversa com o cego Julio no reencontro com o violeiro, em que expia muito dos seus remorsos, mas reafirma suas razões, no que talvez seja o melhor diálogo da história do cinema brasileiro.

Deus e o Diabo na Terra do Sol tem influências do faroeste clássico, especialmente os de John Ford, enquanto que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro possui mais do faroeste revisionista da época, de Sam Peckinpah (influência confessa de Glauber) e do western spaghetti, com suas cores fortes e doses mais fartas de sangue e violência. Ambos formam uma releitura do gênero mais cinematográfico por excelência. Num debate sobre Deus e o Diabo com outras figuras importantes da época, o cineasta declarou: "Para desgosto de muita gente e de você (Alex Vianny), a fita tem muita influência do western. Tem muita coisa de John Ford, que vocês não gostam mas eu adoro, e o Antonio das Mortes é uma figura de citação fordiana mesmo: a forma de ele aparecer, a forma de ele andar, o uso da paisagem, a aplicação da balada. Até o massacre tem muita gente metida." Passados cinquenta anos de seu lançamento, Deus e o Diabo na Terra do Sol permanece desconcertante e original e, tendo gerado imitações e servido como referência (inclusive a faroestes italianos de respeito), não é exagero dizer que nunca antes ou depois foi feito no mundo algo parecido, através de um estilo decorrente de poucos recursos, mas no qual alcança a pura expressão, capaz de unir Brecht, western e cordel.

Texto retroativo da série Clássicos Brasileiros

Comentários (28)

Rodrigo Giulianno | segunda-feira, 17 de Março de 2014 - 11:25

Levei um chute na cara quando vi o novo do Jarmuch. O cara é gênio, mas o inteligentíssimo roteiro ...indivíduos(vampiros) com séculos de cultura acumulada...mas preciso rever e mergulhar nesse universo...assim são os filmes do Glauber...o cara queria filmar Faulkner...sua obra é um banho de cultura...gostando ou não das suas abordagens

Caio Lucas | terça-feira, 18 de Março de 2014 - 22:15

Que beleza.

Fiquei curioso, queria lembrar do diálogo que citou.

Vlademir Lazo | quarta-feira, 19 de Março de 2014 - 02:05

http://www.youtube.com/watch?v=OlgBrV-E0v0#t=91m05s&hd=1

até 1:36:35

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