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Críticas

Cineplayers

O embate do desejo.

9,0
O primeiro filme que assisti de Claire Denis elencava uma situação que eu veria se desdobrar de diferentes categorias em sua filmografia, mas com a narrativa sempre mantendo um certo foco nessa construção. O título era Desejo e Obsessão, que se atrai por aspectos que o tornam ligados ao fantástico de alguma maneira, com sua intensa necessidade por aplacar a sede de sangue de seus personagens, literal e metaforicamente. Já lá (e conferido posteriormente antes de lá também) os corpos filmados se ressentiam de pulsões contrárias a sua razão, e do nascimento desse conflito entre o querer e o ter, Denis criava uma parábola vampiresca sobre os dias de hoje. O desejo do corpo versus a necessidade da repressão vem moldando o cinema dessa francesa que é uma das melhores cineastas da atualidade, e que pega um atalho menos atmosférico dessa vez para contar uma história que, na sua filmografia, soaria como banal; a forma como filma e monta sua estrutura dramática transforma esse num longa tipicamente 'deniano'.

De folga de uma espécie de autodestruição que vinha criando raiz nos seus trabalhos, Deixe a Luz do Sol Entrar tenta emular uma atmosfera leve quase que numa ironia. Logo esse clima se dissipa ao nos darmos conta da natureza de Isabelle, a protagonista. Das personagens mais emocionalmente carentes do cinema recente, Isabelle é separada, tem uma filha e um relacionamento com um homem casado, mas está tentando se conectar à sua realidade interna. Claire mantém Isabelle em cena pelas ligeiras 1 h e meia de duração quase em sua totalidade, e deixa claro que é empática ao mundo interior dessa mulher, que rui. Na seara narrativa, observamos um longa linear e  objetivo, cuja observação dessa realidade refém de si mesma se mostra não apenas acertada mas também capaz de estabelecer as ferramentas para que a direção possa realçar as nuances não só dos personagens como principalmente de suas ações e reações.

A mudança de ares refresca a filmografia de Claire, e prepara o terreno para um salto diferente. Captando cada gesto de uma protagonista que requer muitos, nenhum enquadramento é casual. Uma cena longa num bar começa quase em close do casal até narrar sua interação em imagens através da proximidade dos corpos, dos olhares e da disposição da câmera, que os focaliza com suavidade sedutora. A partir do momento que a personagem masculina passa a demonstrar seu desenho de pequeno poder, a feminina responde aos ligeiros surtos do par, o que provoca o afastamento imediato dela, que vai do constrangimento à repulsa e passando pela rejeição em poucos minutos, fechando o ciclo-jogo em todas as etapas. Como essa cena, que já estabelece o registro sofisticado de Juliette Binoche em cena, veremos novas etapas onde Isabelle dispõe dos desejos mundanos do corpo físico para tentar satisfazer sua sede de querer emocional, muito além do sexo tão fácil.

A cineasta Claire se mostra mais segura que a roteirista (o filme é assinado por ela), mas o desequilíbrio é pouco. A lamentar apenas o lugar-comum onde a personagem gradativamente é jogada pela trama, mas sua trajetória é tão trivial quanto banal, no que isso tem de mais ordinário. Ainda que seus rumos sigam a segurança, é a lente de Claire que transforma o longa e o ressignifica. Os encontros de Isabelle seguem um protocolo de excelência da diretora, tratam-na como um instrumento de seu corpo, que a empurra na direção da realização de seus instintos, ainda que a personagem não seja instintiva, e sim a câmera. No jogo proposto mais uma vez pela experiência de sua autora, o corpo tem vida própria e quer o que a consciência repele. É um jogo repleto de sofisticação que presenteia o espectador com muito além da ambientação; por tratar sua protagonista como veículo do desejo, Claire afirma um lugar para a mulher, de prover ela mesma um arsenal além do caráter observador. Isabelle age, para o interno ou o externo. Ela decide. 

Tendo em mãos esse presente, Juliette Binoche mais uma vez passeia seu imenso talento, indo do riso às lágrimas em questão de segundos numa mesma cena. Sua atuação hipnotiza também por ser escorada nessa banalidade mundana já citada, afinal Isabelle anseia amar. Cabe a Claire se apropriar dos mínimos gestos, toques, olhares e intenções para transfigurar sua narrativa para além desse banal, com força imagética ímpar. A partir da confluência dessa dupla genial, Deixe a Luz do Sol Entrar é um retrato feminino poderoso e vibrante sobre a jornada de uma mulher que quer tanto e tão pouco ao mesmo tempo, mais uma radiografia singular sobre as contradições do corpo vindo uma especialista do método. Que ele acabe resvalando na identificação empática também masculina é um bônus para seus intentos como contadora sensoria. 

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