Um fantasma assombra a América Latina, e assim será por muito tempo: a memória das ditaduras militares num passado mais ou menos recente, e cujas lembranças dolorosas com alguma freqüência retornam aos cinemas para serem expurgadas diante do espectador. Dawson Ilha 10 (Dawson Isla 10, 2009) faz parte desse cinema que coloca em foco tragédias coletivas em que os direitos humanos e constitucionais são suprimidos, em torno de uma denúncia sobre a qual é estruturada uma história para envolver o público, e fazer com que ele saia no final revoltado ou, no mínimo, se sentindo como tendo passado por uma experiência “esclarecedora”. O filme trata de uma ilha transformada em prisão para onde são levados ex-ministros, médicos, engenheiros e pessoas de diferentes importâncias no governo do presidente deposto Salvador Allende, após o golpe militar no Chile em 1973. Todos prisioneiros políticos, confinados em condições precárias numa gelada ilha no fim do mundo ao sul do continente americano, com parcos alimentos e sem assistência médica necessária (inclusive para os próprios militares, que quando precisavam, recorriam aos presos que conheciam medicina). Cada um dos presos era despojado inclusive de sua própria identidade, obrigados a abrir mão do próprio nome e adotar a demoninação de seus barracões em meio aos alojamentos, e um número correspondente. Ilha 10 é a designação que coube a Sergio Bitar (Benjamín Vicuña), ex-ministro de Minas do governo Allende, e em cujas memórias o longa é baseado.
O filme do veterano Miguel Littin expõe uma verdade contundente: a dos campos de concentração na América do Sul, e as mortes e torturas físicas e psicológicas que tanto vitimaram pessoas de diferentes origens, dentro ou fora dos tais campos. Até aí tudo bem, só que estamos diante de mais um exemplo que está longe de um cinema que é político por seu próprio fazer, por um olhar de mundo, no que podemos pensar em filmes como Weekend à Francesa (Weekend, 1967) ou Film Socialisme (Film Socialisme, 2010), ou outros que também filmaram um estado, ideia ou cenário de caos e confusão política ou uma desordem instaurada. Dawson Ilha 10 é sobre temas políticos submetendo o assunto genericamente às normas de um cinema de espetáculo, crescendo num tom de efeitos exploratórios das desgraças de suas vítimas. Trata de temas importantes como opressões e imperialismo, e os acordes da trilha incidental tocam pontual e estrategicamente para emocionar o público, porém é antes de tudo um cinema que mesmo querendo nos transmitir uma mensagem de liberdade, nos leva a um hiperconformismo através de uma consciência historicizante e de um didatismo flagrante: vemos tudo somente como algo que aconteceu há mais de trinta e cinco anos, dentro de um passado definitivamente remoto fazendo parte de uma condição que não nos pertence e a qual podemos enxergar de uma posição privilegiada. O verdadeiro cinema político não é necessariamente o que nos conscientiza mas sobretudo o que nos transforma.
Dawson Ilha 10 é mais um exemplo em que não há a problematização de suas figuras em cena, dentro de uma completa não-relativização do ponto de vista que Littin opta: cada um à sua maneira, todos subsistem dentro das condições a que seus papéis foram reservados, e não haverá desvios ou fugas nesse sentido para que possamos enxergar os personagens de outra forma. São as limitações do cinema como aula de História, em que os personagens acabam reduzidos a joguetes dos propósitos e intenções de seus realizadores. Mesmo que Littin por vezes evite um maniqueísmo escancarado (em um momento ou outro alguns militares sentem um certo desconforto com as circunstâncias), o filme raramente foge de um esquematismo redutor. São poucos os momentos de Dawson Ilha 10 em que opressores e cativos não existem de forma alguma a não ser como coletivo, em vez do individual particular de cada um, o que quando surge em cena no filme de Littin é apenas como rascunho.
O cinema político é o que questiona (o que gira em volta mais de questionamentos que de questões), não o voluntarista que chega oportunamente depois já trazendo os resultados consigo e apenas querendo nos fazer abraçar seus postulados. O verdadeiro cinema político é o que media um discurso mais num diálogo travado entre filme e espectador do que no discurso em si, o que geralmente ocorre através de escolhas formais e opções estéticas, não num cinema reduzido ao conteúdo. Enfim, é aquele no qual certezas são desmontadas, seguindo com uma desconstrução total de uma realidade política que não encerra, mas abre uma miríade de questões de mundo.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário