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Críticas

Cineplayers

A insanidade como ponto de equilíbrio.

7,0
A filmografia repleta de filmes enigmáticos e a estranha persona do diretor David Lynch foram cimentando ao longo dos anos toda uma mítica em volta de seu universo tanto particular quanto profissional, e seus muitos fãs e até detratores sempre se mostraram muito curiosos sobre tudo isso. Diversos filmes, livros, grupos de discussões internet afora procuram desvendar os enigmas, signos, mistérios e linguagem, mas todo seu charme e até mesmo sucesso está justamente em parecer cada vez mais indecifrável conforme é estudado. Sempre muito recluso e agora prestes a voltar à ativa com a nova temporada da série Twin Peaks, recentemente concordou em expor alguns de seus trabalhos com artes plásticas e revelar lembranças e reflexões sobre sua história de vida para o documentário David Lynch: A Vida de um Artista (David Lynch - The Art Life, 2016), que acaba de estrear na 40ª Mostra Internacional de São Paulo. 
Num formato bem simples que acompanha Lynch trabalhando com seus quadros em sua casa em Los Angeles, intercalado com imagens de trechos de curta-metragens e esboços de desenhos, o filme é narrado em off pelo próprio, que aos poucos revela sobre sua infância e começo de vida adulta. Para alguns fãs muito aficionados, pode ser uma decepção que o foco do documentário jamais seja extrair do cineasta algum parecer ou resposta sobre seus filmes. O objetivo aqui é simplesmente ouvi-lo em suas reminiscências e a partir disso criar por conta própria uma possível associação da influência que esses acontecimentos narrados poderiam ter sobre suas obras. 

Pode parecer uma proposta até mesmo pretensiosa, essa de deduzir como sua vida pode ter influenciado sua arte, mas ao longo do filme fica muito difícil não associar uma coisa a outra. Por exemplo, os relatos sobre sua infância feliz e bucólica subitamente são interrompidos por uma lembrança macabra de uma mulher nua, sangrando pela boca, que um dia despontou em sua vizinhança, chorando e lhe pedindo ajuda. Esse primeiro contato do pequeno Lynch com algo tão destoante daquela existência pacífica e harmoniosa acabou criando uma impressão muito profunda sobre ele, e muitas de suas obras tanto no cinema como na pintura ou música trabalham com algumas rupturas e contrastes entre o singelo e o grotesco, entre o sonho e o pesadelo. 

Parte do processo criativo que fervilha em sua mente é exteriorizado apenas em sequencias em que os diretores acompanham Lynch criando em seu ateliê, mexendo com cores, formas, texturas e explicando, à seu modo, como suas impressões sobre o mundo acabam se convertendo nessas manifestações da sua arte. Como um verdadeiro artista, Lynch jamais parece se importar com essa “invasão”, e tampouco se dá ao trabalho de detalhar demais seus relatos, soltando apenas informações que considera ou relevantes ou apenas queridas, o que acaba revelando um lado muito humano e carinhoso do diretor, que inclusive aparece em algumas cenas brincando com a filha pequena. 

A trajetória dele é analisada até a direção de seu primeiro longa, Eraserhead (idem, 1977), e é o suficiente para formar um painel sobre os temas que mais lhe são caros e pessoais, e para os que estão familiarizados com sua filmografia será natural encontrar muitos paralelos entre a vida e os filmes de Lynch, embora tudo não passe de uma especulação. Mas o interessante nesse meio é notar o quanto ele parece encontrar lógica, inspiração e conforto dentro de toda sua “insanidade” e particular visão das coisas, e como tudo aquilo que parece tão bizarro ao público é simples para ele. Como diria Raul Seixas, a arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal. 

Visto durante a 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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