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Críticas

Cineplayers

O X da questão.

8,5
Ao assistir um filme como Cure (Kyua, 1997) procurando encontrar um tradicional thriller de investigação como estamos acostumados a ver no cinema americano, pode ser que a reação imediata seja a de surpresa ou estranhamento. Embora a sinopse indique o corriqueiro plot do detetive em busca de um serial killer, o foco sobre o qual recai a atenção do diretor Kiyoshi Kurosawa é totalmente voltado para o lado oposto da solução do caso. Não interessa a ele chegar à identidade do criminoso, sequer interessa sondar suas razões ou origens – o foco de Cure é muito mais sombrio e indigesto. 

Adotando um rigoroso tom formal e distante, Kurosawa aposta em muitos planos abertos, sequências desconexas e personagens opacos. Cada quadro de Cure parece inanimado e absorve qualquer ação e personagem para uma condição estática e fria que, cedo ou tarde, passa a incomodar e assombrar de uma forma muito peculiar. Sua narrativa é tão econômica e seca, que qualquer manifestação de vida ou ação corrente parece minguar. Em outras palavras, ele desenvolve um ambiente estéril e estende uma mortalha de silêncios e dúvidas que se condensam num retrato cada vez mais próximo e macabro de loucura. 

Nesse ambiente, acompanhamos o detetive Takabe e sua busca pelo segredo por trás de uma onda de assassinatos cometidos por diversas pessoas diferentes, porém dentro de um mesmo padrão. Um surto coletivo ou existiria por trás de tudo a influência de alguém ou de algo? Transitando num terreno incerto e obscuro, ele acaba se deparando com um homem sem identidade e sem memória que parece exercer uma influência psíquica sobre as pessoas com quem convive, levando-as a matar entes queridos dentro de um padrão peculiar, rasgando um X na garganta das vítimas. Não sabendo com quem está lidando ou a fonte dos poderes que o homem misterioso possui, o detetive logo se vê deparado com seus próprios fantasmas. 

Nesse universo demente arquitetado por Kurosawa, o Mal – seja lá o que ele for ou quem ele for – ganha uma forma humana, que de alguma maneira extrai o que há de pior nas pessoas ao redor e as coloca de frente ao seu lado mais egoísta e nefasto. Se na cena inicial do filme já somos apresentados ao drama de Takabe e sua esposa que apresenta algum tipo de lapso de memória crônico que a impede de ter uma vida normal, logo fica claro que a dedicação do detetive em cuidar dela esconde uma frustração latente, um desejo de se livrar de alguém antes amado e que hoje se apresenta como um estorvo. Como encarar esse sentimento tão cruel e desumano? De alguma maneira, Takabe sabe que aquele homem, ou o Mal, tem o poder de revelar esse seu sombrio impulso subconsciente e instintivo. Num entendimento mais amplo, tudo não passa de uma metáfora sobre a natureza egoísta do ser humano. 

Por lidar com um mal interno e inominável, é claro que o caminho percorrido por Kurosawa jamais toma o rumo de alguma solução ou desfecho redondo. Como já dito, toda a atmosfera construída pelo diretor engole qualquer sinal de vida e assimila toda a violência brutal com um incômodo tom minimalista, distante e impessoal – e de tão indiferente, muitas vezes se limita a depender do que há fora do quadro, fora da nossa área de compreensão e visão, alimentando nossa curiosidade por meio de sons e ações ocorrendo no extracampo, o que só aumenta o abstracionismo manipulado pelo diretor. Ao contrário da lógica de qualquer outro filme investigativo, que depende de novas pistas e informações para poder avançar em sua narrativa, Cure depende da ausência de provas, do vazio de informações, para ir aos poucos se dissolvendo em volta do próprio eixo, perdendo a consistência material ao adentrar no terreno ilógico regido pela insanidade, pela maldade e pela dor. Dentro desse enlouquecedor reflexo da alma humana, não há nada que possa oferecer consolo ou concessões, pois nada é mais perigoso e imprevisível do que o lidar com seus próprios demônios. 

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