A Disney tem histórico irregular quando o assunto é adaptações live-action. Peguemos como exemplo Aladdin, Cinderela e Malévola, só algumas de tantas que têm sido lançadas recentemente. O resultado em tela é tão errático quanto no mínimo peculiar nessa transposição de dinâmicas que funcionavam muitíssimo bem no 2D e no traço. Causa estranheza para alguns e certa admiração para outros a solução encontrada para representar, por exemplo, um gênio da lâmpada nesses filmes com atores que a Disney se embrenhou em fazer numa movimentação a toque de caixa para o lucro, embora se vislumbrasse um traço autoral aqui e acolá em um filme ou outro dessa leva. Não é o caso de Cruella.
Muito embora o cineasta Craig Gillespie possa ter sido um bom nome elencado, pelo menos em tese, para conduzir essa história de origem, dada a sua mão certeira na condução de Eu, Tonya (2017), o resultado contradiz as expectativas. É até louvável que ele faça aqui em Cruella algo além do burocrático na movimentação de câmera, variando a maneira com que explora os cenários, ora percorrendo-os em travellings, ora em planos-sequência, porém sempre com aquela seleção musical que mais remete a uma playlist genérica de Spotify. É previsível essa cartela escolhida para a trilha, que se mostra bem calculada para ser fiel aos anos 70, assim como é manjada toda a ambientação aqui, ainda que cuidadosa.
Os cenários londrinos daquela época são bem recriados, mas não se destacam muito além do que já vemos em filmes situados no mesmo período. A ambientação e todo o trabalho técnico, portanto, são bastante dignos de nota e não fazem por merecer apontamentos mais incisivos. Por outro lado, a trama, a substância dessa casca caprichada tecnicamente e bem encenada por Gillespie, com sua lente explorando com originalidade os espaços, não acompanha o mesmo vigor da embalagem pop deveras louvável que Cruella se pretende. É uma narrativa engessada que não acompanha os passos da dança frenética que é sua estética.
A linguagem cinematográfica aqui é bem nítida no visual, mas não se articula ao texto a ponto de criar uma movimentação interessante aliando progressão original dos acontecimentos com peculiaridade gráfica. Dá pra notar que Cruella faz uso até certo ponto interessante de CGI, que não carrega ou satura o quadro, mas passa longe de conseguir juntar estofo narrativo à plasticidade como um Speed Racer (2008) fez. É um filme que não lida tão bem com o fator gráfico, embora dele se utilize, porque nunca soa autêntico nesse proveito.
Outro ponto que breca forças no filme de Gillespie é a falta de síntese pra essa história de origem, que termina por ser bem mais longa e enfadonha do que deveria. A apresentação da protagonista – interpretada por uma Emma Stone que performa muito bem – e de seus comparsas Jasper e Horácio é sucinta e videoclipesca, quando deveria ser mais parcimoniosa, e o desenvolvimento dos demais atos é excessivo, quando poderia ser mais dinâmico e objetivo. Mas pelo jeito a dinamicidade em Cruella está só na câmera que passeia por telhados, entra por janelas, rodopia e simula zooms. Estella, que em sua transformação para virar Cruella demonstra o quanto o longa se parece com um Coringa - e em certa medida até com um Diabo Veste Prada - que não deu certo, tem comparsas que se resumem a caricaturas insossas e que em nada servem para tornar a trama mais divertida e flexível, embora com um Paul Walter Hauser tentando ser o cara da plateia ao se esforçar e até se divertir no papel.
No fim das contas, Cruella não é atraente também porque se leva demais a sério da metade pro final, quando uma trama, toda descompassada e apressada, de vingança é engatilhada em cima de fiapos de motivação e história. Nesse meio do caminho, rolam umas demonstrações visuais até bem espirituosas remetendo à anarquia e a uma ideia de contracultura inerente à Estella, mas são subaproveitadas perante a uma exploração no geral bem genérica de todos os personagens aqui. De modo predominante, a exploração visual do filme é competente, mas pontualmente é pouco original e às vezes até quebra o ritmo pela montagem acelerada que a rege. O filme sofre com esse pé que, por vezes, insiste em pisar no acelerador quando tudo pedia mais cadência. O recurso voice over também é fator eventualmente incômodo, só não mais que o maior twist do filme.
**** SPOILERS ****
Pra ser sincero, a revelação – barra reviravolta - final meio esdrúxula veio depois de tanta canseira pela trama inchada que só pude reagir com indiferença. Nenhum suspiro, portanto, ao descobrir que Cruella era, na verdade, filha da Baronesa Von Hellmann e não de quem acreditava ser, ou seja, sua suposta mãe morta pelos dálmatas da própria Hellmann.
Fosse menos afobado e também menos uma colagem de elementos avulsos de pose cool, com coadjuvantes soltando piadocas e servindo a um humor físico banal, o filme poderia ser mais eficiente, mesmo que mantendo a sua verve mais plástica. Não era preciso abandoná-la, porém torná-la mais em prol da narrativa e menos um mero enfeite pra demonstrações eventuais do que uma câmera é capaz. Cruella não o fez e não trabalhou bem com suas caricaturas, que eram bem possibilitadoras para uma história que poderia ser experimental e cativante ao mesmo tempo. O saldo final é de um limbo mesmo, que fica perdido entre uma exploração mais sombria da origem de sua protagonista e uma que parece rir de si mesma, mas nunca se encontrando em tom. Antes fosse um trabalho mais à Todd Philips, assumindo uma linha do início ao fim, decidindo-se entre o sério e o descolado, ainda que com todas as imperfeições apontáveis para sua versão do Joker e ainda que Cruella não tivesse que ser um novo Coringa, mas sim um projeto original, porém melhor trabalhado.
"Thanks for watching this so i don't have to".
- Jack Nicholson