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Críticas

Cineplayers

Nanni Moretti confirma-se como um dos melhores cineastas da atualidade, em um dos melhores filmes de 2006.

8,0

Nunca fui muito fã do diretor Nanni Moretti. Caro Diário e Abril, seus primeiros filmes a ganhar distribuição no Brasil, não me convenciam. Até que, em 2001, com o lançamento de O Quarto do Filho, ele me conquistou. A história de como aquela família lida com a perda precoce e estúpida do filho, é das mais tocantes e sensíveis mostradas pelo cinema nesta primeira década dos anos 2000. De lá para cá, aguardava ansiosamente pelo trabalho seguinte do diretor. Infelizmente (ou não), ela só chegou agora, cinco anos depois, com O Crocodilo, obra na qual Moretti realmente se confirma como um dos melhores cineastas em atividade.

O Crocodilo conta a história de Bruno Bonomo (Silvio Orlando), produtor de cinema à moda antiga, uma mistura de Roger Corman, Ed Wood e William Castle. Logo no início, ele nos é apresentado através de um festival em sua homenagem. No entanto, em vez de ressaltar suas obras, os organizadores preferem destacar o fracasso de Cataratas, seu último filme, lançado há mais de 10 anos. Mesmo assim, Bonomo se revela persistente e já planeja seu retorno às telas com mais um versão da saga do descobrimento da América por Cristóvão Colombo.

Na sua vida pessoal, as coisas também não vão nada bem. Se a relação com os dois filhos é bastante próxima, o casamento com Paola (Marguerita Buy), por outro lado, está por um fio.

Até que o roteiro de um filme chamado O Crocodilo vai parar em suas mãos. Bonomo começa a ler e visualizar mentalmente suas imagens. Logo se convence que o material justifica o investimento. Sem perder muito tempo nos detalhes e não se importando com o fato de a autora do projeto ser uma marinheira de primeira viagem, o produtor corre atrás do financiamento. Só depois de receber as primeiras recusas, Bonomo se dá conta que a história de O Crocodilo é uma referência explícita ao primeiro-ministro Sílvio Berlusconi.

Chamado de Woody Allen italiano, a filmografia de Nani Moretti sempre se pautou por conciliar com habilidade a comédia e o drama. Com O Crocodilo, o diretor traz uma novidade: além das piadas e das observações sobre a natureza humana, o roteiro vem apimentado com um forte tom político. O conteúdo das denúncias a Berlusconi é francamente aberto, sem meias-palavras. O ódio que Moretti nutre pelo político assemelha-se ao de Michael Moore por George Bush. Mal comparando, pode-se dizer que O Crocodilo representa o Fahrenheit 11/9 italiano, num registro ficcional.

Se em Cidadão Kane, Orson Welles falava do magnata da imprensa William Handolph Hearst de forma velada, em O Crocodilo, Moretti não se preocupa em esconder-se nas entrelinhas. Seu Berlusconi é apresentado de forma folclórica, meio felliniana, alguém que caiu nas graças do público através de medidas popularescas (como criar os programas televisivos vespertinos para as donas de casa). Nas primeiras leituras do roteiro, Bonomo o visualiza como um ser fanfarrônico, um Deus descendo dos céus de helicóptero, no meio de estádios, agradecendo ridiculamente os aplausos do público, com os óculos deliberadamente tortos. Em outra imagem, o produtor o vê como uma espécie de Darth Vader (até a trilha sonora faz referência à ficção de George Lucas) , caminhando pelos corredores das corporações, intocável, acima de qualquer suspeita.

Paralelamente ao tema maior, das denúncias políticas, Moretti não se descuida do micro espaço. O cotidiano da vida de Bonomo integra boa parte do filme e muito da força da fita vem daí. As dificuldades e amarguras enfrentadas pelo núcleo familiar formado por Bonomo, sua esposa e dois filhos, torna os personagens humanos e, por isso mesmo, mais reais. Sentimos-nos mais próximos a eles e interessados pelos seus destinos. São raros os filmes que conseguem atingir este efeito. O Crocodilo consegue e com extrema competência.

O roteiro faz uma evidente ponte entre a vida do protagonista e a atual situação política da Itália. No início do filme, a personagem se mostra um homem com dificuldade para lidar com a realidade. As conversas com os filhos são sempre em tons de fábulas, reinvenções cada vez mais mirabolantes de seus filmes de terror. Na questão da separação, Bonomo procura eternos subterfúgios para escapar da discussão. Entretanto, à medida que o filme avança, a personagem vai amadurecendo, talvez como o próprio povo italiano, que passa a olhar para Berlusconi de forma mais desconfiada.

Em outro momento, quando pensamos que nada de pior pode ocorrer na vida do produtor, outro infortúnio se sucede, materializado nas dificuldades de financiamento, na perda do seu astro principal ou no fim do casamento. Aqui, o paralelo com a situação nacional é dado pela observação do investidor polonês Jerzy Sturovsky (não à toa, um estrangeiro), que diz que a Itália sempre acha um buraco novo para cavar, por mais fundo que já esteja dentro do poço.

A tantas outras,  num instante de divertimento com os filhos, o próprio Bonomo diz: “Até quando posso fazer cócegas nos meus filhos?”. E um deles responde: “Até os 10!”. A alusão aos limites admitidos por uma população quanto aos desmandos de um governo, é clara.

Com este jogo entre o público e o privado, Moretti nos alerta que os problemas de repercussão nacional devem ser enfrentados sem prejuízo dos dramas menores, que, no fundo, constituem o dia a dia de todos nós. O macro e o micro. A atenção deve estar voltada às duas frentes. É como se Moretti dissesse que uma sociedade vigilante não sobrevive se as relações entre as pessoas que a compõe, vistas pelo buraco da fechadura, estejam corroídas em sua essência. A importância do núcleo familiar iguala-se à própria idéia de Nação e Estado.

O Crocodilo faz, ainda que indiretamente, uma homenagem ao cinema político italiano, que teve sua fase áurea em fins dos anos 60 e começo dos 70. O ator símbolo do movimento, Gian Maria Volonte, é mencionado por mais de uma vez, por dois de seus filmes mais representativos: Juízo Final e Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, ambos de Elio Petri. Além disso, há uma pequena participação de Giuliano Montaldo, no papel do diretor Franco Cáspio. Ao lado de Petri, Montaldo foi um dos maiores expoentes desta importante fase do cinema italiano, responsável por obras como Sacco e Vanzetti e Giordano Bruno, ambos também estrelados por Gian Maria Volonté. 

No quesito interretação, O Crocodilo está bem servido. Silvio Orlando compõe um Bruno Bonomo com diversas facetas. Uma espécie de Steve Carrell italiano, ele é, de um lado, uma criança num corpo de um homem, enquanto que de outro, seu olhar vem carregado com uma certa melancolia. São características que acentuam a dificuldade de amadurecimento do personagem. Marguerita Buy me fez lembrar a atriz argentina Cecília Roth. De uma beleza madura, sabe que aquele universo de filmes do marido, ao qual pertenceu no passado interpretando a personagem Aidra, é meramente fantasioso e insustentável a longo prazo. Ela é o elemento do casal que tem um pé fincado na realidade. Completando o elenco, além do já citado Montaldo, temos Jasmiine Trihca, como a diretora estreante Teresa; Michele Placido, como o ator feiticihista Marco Pulici; e o próprio Moretti, provando sua competência também diante das câmeras.

O Crocodilo estreou na Itália em maio, antes das eleições para o Parlamento. Coincidência ou não, Berlusconi foi derrotado nas urnas. Rotulá-lo de profético ou meramente planfetário seria reduzir suas qualidades. O Crocodilo vai além disso. Num único pacote, o filme concilia coragem, sensibilidade, graça, emoção, profundidade e atualidade (em mais uma de uma passagem, a Itália descrita por Moretti nos faz lembrar o Brasil).

O Crocodilo é um dos melhores filmes lançados nos cinemas brasileiros em 2006.

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