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Críticas

Cineplayers

O organismo infectado de Cronenberg.

9,0

O mundo em Cosmópolis (Cosmopolis, 2012) só é visto através de uma tela. De janelas de carro, de televisões embutidas em limusines, da própria tela do cinema. A violência selvagem e desvairada, as revoluções que não são televisionadas, a morte de ícones de uma geração, os atentados políticos e corporativos... Tudo é contemplado, ao longe, por Erick Parker. Que conversa, conversa e conversa. Realista, cínico, cruel e franco com as pessoas que saem e entram da sua limusine com aparência de salão real – e elas são tão alienadas e irônicas quanto o protagonista. Erick quer conseguir um corte de cabelo, e cruza uma metrópole em nome disso. Ele transa, realiza exames médicos, bebe e confere os últimos dados da bolsa dentro da limusine. Esse é o seu trono e a sua prisão: o acuado dono do mundo de Cosmópolis quer fugir da sua fortaleza sobre rodas.

A narrativa distante, estranha e desdramatizada de Cronenberg é como a atmosfera que o próprio cria: dentro do grande carro de luto, Erick é testemunha de tudo mas não é participante de nada. Os longos diálogos, tirados de forma praticamente integral do romance de Don Delillo, conciliam duas óticas de mundo sob uma mesma obra: convergindo o interesse de Delillo e sua linguagem contemporânea e crítica às mídias de massa, a guerra fria, a era digital, o terrorismo e a televisão, há o interesse de Cronenberg em retratar um homem e seu interior criado para ser perfeito (a limusine) e sua relação exteriorizada com o resto do mundo: sempre que ele sair do luxuoso veículo irá, progressivamente, tornar-se mais vulnerável. Esta parece ser justamente a sua busca: se dentro do veículo manda e desmanda, arranca confissões, dá ordens, transa com mulheres, lá fora tenta transar com sua esposa frígida em três momentos diferentes do dia (café da manhã, almoço e jantar), pede para uma segurança atirar com uma arma de choque  em seu peito e, finalmente, ao final do filme, tem de encarar aqueles que pagam o preço pela sua concentração excessiva de renda, estimada na casa dos bilhões – o quanto, nem ele sabe dizer.

A aberração física típica dos filmes de Cronenberg dessa vez é mínima mas o suficiente para, por algum motivo, inquietar: o momento em que o filme começa, de fato, é quando durante um exame de próstata que ele faz, dentro do carro, enquanto conversa com uma conhecida sua sobre negócios e o médico constata que Erick tem uma próstata assimétrica. Uma informação sem finalidade nem forma para o homem que quer saber da origem de tudo (do seu dinheiro, do dinheiro dos outros, e inclusive para onde vai a limusine que dirige) que, pouco a pouco, vai tirando-o do eixo.

Se o que acontece, de fato, é alterado por um detalhe mínimo, assim é a história de Cosmópolis, assim é a maneira que Cronenberg filma: assim como partes anatômicas do protagonista (ou de qualquer indivíduo), a câmera do canadense é infectada igualmente pelo “vírus” da anormalidade; disforme e fora da linha do horizonte, com alturas de câmera desconfortáveis, planos fechados esmagadores, lentes e movimentos que descrevem toda a tecnologia concentrada da vida moderna em um só lugar – conciliada com a cenografia do filme, os cenários simétricos e claustrofóbicos e as roupas perfeitamente alinhadas sugerem, ainda que vagamente, o ambiente de uma prisão – a prisão dos abastados, dos homens do capital, dos superadaptados. Que, como em Calafrios (Shivers, 1975) e A Mosca (The Fly, 1986), irão através de algum pretexto liberar o lado bestial e sempre confinado.

E a missão de Cronenberg e de alguns personagens nesta obra que podem vagamente lembrar seus alter-egos (como um protestante que gosta de arremessar tortas ou o homem falido interpretado por Paul Giamatti, apresentado no ato final) é mesma missão do escritor, matador de insetos e guerreiro do submundo Bill Lee, de Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991): a guerra contra o racionalismo frio e indiferente, contra o desejo castrado, contra as ditaduras da estética. E é por isso que, mais uma vez, o diretor compõe personagens que apenas parecem normais à uma primeira vista: no final das contas, eles são justamente a palavra que perturba Erick: assimétricos.

Robert Pattinson, na pele do já não tão jovem e angustiado magnata, tem a grande atuação da sua carreira até o momento: longe da saga pré-adolescente que protagoniza, o mesmo sente-se à vontade para arriscar vôos maiores e mais ambiciosos. Em um filme formado por minúcias, sua atuação é um dos principais componentes ao encenar o desespero contido que resulta tanto nas cenas mais ternas do longa – quando Erick finalmente consegue o corte de cabelo e, em uma longa conversa, é criticado pelo barbeiro que corta-lhe o cabelo desde a tenra infância e pelo motorista de sua limusine da sua falta de ação, de agressividade, da sua passividade, inércia e contemplação. De não ter tomado nenhuma decisão, apenas ser derrotado por uma companhia chinesa enquanto manda comprar imóveis e chora pela morte de seu rapper favorito.

A entrega do ator atinge um dos seus ápices na tal seqüência, após testemunharmos praticamente a autópsia de um ser vivo durante o resto da sua projeção, com seu corpo sendo mexido, remexido e explorado incansavelmente. É quando o interior conturbado desse homem parece finalmente vir à tona: aumentam-se as linhas tensas de expressões faciais e modulações vocais de fragilidade. O todo no qual a seqüência é trabalhada – grande parte dos ângulos de câmera escolhidos “esmagam” visualmente o protagonista mostra entre ator e diretor uma compreensão singular do material.

E se entre cabeças explodindo, armas sendo tiradas do ventre, homens sofrendo metamorfoses monstruosas, homens enfrentando-se violentamente em uma sauna e agentes heroinômanos combatendo ditaduras inconscientes, uma seqüência de Cosmópolis que deveria entrar no rol das cenas antológicas da filmografia de Cronenberg é justamente sua última, a chegada de Erick ao inferno, onde um homem falido moralmente encontra um homem falido economicamente. O homem que não consegue consumar o casamento, não consegue tomar decisões e dispensa (e despacha) a segurança, onde o conceito de estranheza e assimetria encontra seu potencial máximo quando Pattinson encara Paul Giamatti, um vingador, um homem despedido da empresa Packer Capital de Erick que é um dos muitos que ambicionam matar Erick ambicionando encontrar a redenção.

Esses homens tão distantes e tão próximos que tornam Cosmópolis uma peça verdadeiramente contemporânea: em tempos de era digital, sabemos de tudo, o tempo todo. Mas praticamente não participamos. Engrossamos o volume de uma massa disforme e bestial que responde a estímulos persistentes e contínuos. Erick arrasa com tantas vidas indiretamente todos os dias e está alienado dentro de um cubículo super luxuoso e ultratecnológico e que por mais que transe, abrace, compre e sinta os pequenos abalos (como quando revoltosos balançam seu carro), nada responde sua angústia: o personagem apenas contempla um mundo em rota de colisão direta consigo mesmo. E seu arauto é seu espelho: o homem quarentão, baixo, gordo e feio, que quer se vingar de Erick não por altruísmo, mas por orgulho. E por identificação. A longa conversa que têm jamais é conclusiva, jamais explana. Em todo o seu confronto de raiva, angústia e cinismo, apenas confunde mais ainda.

Ao trabalhar com dois extremos, Cronenberg mais uma vez cria uma grande seqüência baseada na transformação degradante originada lá atrás, no conflito da relação entre exterior/interior. O principal mote do filme – a citação que o abre, um assunto que é discutido de forma jocosa em uma de cenas que não fazem desenvolver uma trama em si, mas a história, os personagens, uma atmosfera, é que a ratazana tornou-se a moeda de troca. Tal epígrafe do poeta polonês Zbigniew Herbert resume bem o sentimento de decadência e entropia que cerca Cosmópolis, onde nada nunca esteve tão “estético”, tão limpo, tão futurista – e talvez aí que more nosso maior vírus: essa superadaptação descrita nas atuações reservadas, minimalistas e lacônicas e vomitada através de uma montanha de diálogos criou a tal montanha de instintos repulsivos disfarçada de “ser humano”, o protagonista recorrente da carreira de Cronenberg. Dessa vez, a forma final do monstro é atraente, adaptada, bilionária; o ápice do sonho de um sistema sócio-econômico.

O vírus já mora em nós há muito tempo: o tom monocórdico de Pattison, Cronenberg, Dellilo e Herbert contemplam e descrevem sangue, fome, morte e doença. Mas o desejo pelo acúmulo nos tornou inertes, e nossa moeda de troca pode ser papel ou animal morto, às toneladas e milhões ocorrerão negociações que nenhum de nós tem certeza do tamanho e será nossa ruína, por mais bela que seja nossa prisão: esse é o terror cronenberguiano de sempre, encerrado em um filme que não pertence a lugar nenhum – e por contigüidade, pertence a qualquer lugar. E com sua estética desconfortável e incômoda dentro da simetria atraente e doentia, poucas vezes Cronenberg descreveu o cenário de “terra arrasada” de forma tão eficiente e, justamente, tão perturbadora. Do nível das suas grandes obras-primas, Cosmópolis representa o auge da maturidade, tanto de discurso quanto estética-narrativamente de um outsider por opção e vocação, mostrando mais uma vez a razão de ser um dos diretores mais relevantes de sua geração.

Comentários (17)

Rodrigo Giulianno | sexta-feira, 28 de Setembro de 2012 - 18:04

Bernardo é o melhor crítico do Players!

Adriano Augusto dos Santos | terça-feira, 30 de Outubro de 2012 - 09:49

Pattison e seu rosto vazio foi tão bem colocado,ficou exato.É a imagem necessária e precisa desse homem frio e perdido.

Caio Henrique | terça-feira, 29 de Abril de 2014 - 11:49

Crítica foda para um filme foda!

Rodrigo Giulianno | quarta-feira, 28 de Outubro de 2015 - 11:06

Reli a crítica depois de rever o bluray duas vezes...

É a melhor crítica do site...é melhor o cp cuidar bem do arquivo

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