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Críticas

Cineplayers

Desconexão a partir do feminino

4,0

Existem 'muitos filmes' dentro de O Corpo é Nosso!, e esse desafio para destrincha-los poderia ter sido vencido pela diretora Theresa Jessouroun. Talvez o mais acertado na verdade fosse separá-los em filmes diferentes, tendo em vista que em muitos momentos eles nem se comunicam, restando só uma pincelada a unir suas narrativas difusas. Na verdade, apesar do próprio título não mentir e entregar de cara o tema a ser explorado, o filme parece abrir inicialmente uma conversa sobre feminismo e lugar de fala, repercutindo alguns diálogos que se apresentam na primeira cena. Conforme ele avança, que na verdade a proposta é observar a evolução do corpo feminino através dos tempos, sua significação e espaço até ser ressignificado gradualmente e o feminismo ser um dos dados a serem explorados, sem especificação. Soa confuso, e não apenas nessa primeira chamada, mas é uma questão menor dentro do campo.

O filme se posiciona dentro do docudrama (assim como aqui no Cine PE vimos Frei Damião), mas trata suas partes de maneira tão independente que não demora a deixar de fazer sentido em seus lugares distanciados. Se na área documental assistimos interessantes depoimentos de antropólogos a elaborar um pensamento sobre a emancipação do corpo da mulher através dos costumes, da arte, da evolução do tempo, na área dramática um jornalista recebe a incumbência de escrever um artigo sobre feminismo e descobre uma filha ilegítima no processo, fazendo com que ele reavalie sua posição machista e antiquada; para unir as duas partes, o jornalista passa a acompanhar os depoimentos que a própria Theresa colhe. Nada muito eficaz, o filme explora essa comunicação de maneira rasa, e durante a primeira metade da duração parecemos estar diante de um enredo dos mais novelescos, que volta a ser retomado mais tarde com resultados igualmente irregulares.

Tecnicamente tudo é mais acertado. Tanto a pesquisa histórica em relação aos lugares por onde o corpo feminino precisou chegar para ter os seus direitos quanto os depoimentos conseguidos são ricos (ainda que não apresentem nada necessariamente novo ou inimaginado sobre o assunto), e o filme chega a compor uma estrutura narrativa criativa nessa pesquisa. Na seara dramática, a qualidade da fotografia é evidente, e o filme tem muita autonomia em sua condução. Só que além de não se comunicarem, seus dois tomos estruturais caminham para lados pelo menos paralelos, raramente unidos. Existe também o estranho ponto de vista masculino a permear toda a parte dramática, que com pouca chance de errar será merecidamente criticado. Sem querer abrir flancos de batalha, mas um filme que versa sobre a luta da emancipação do corpo feminino contar com passagens onde um homem evolua de machista para desconstruido de maneira absolutamente inorgânica, é um ponto negativo. 

É fácil compreender as boas intenções da diretora em propor um universo menos polarizado entre homens e mulheres para apontar os privilégios de um e as ausências de outras. Mas soa sem sentido discorrer sobre a luta feminina para conseguir um espaço que não lhe é dado gratuitamente ainda hoje e complementar a esse contexto uma ficção sobre um homem fragilizado e em processo de evolução sobre suas ideias infelizes. Todo o apuro técnico parece perder o propósito ao tentar mediar esses dois lados tão opostos; a ideia de união é necessária, porém tratar essa união mais uma vez como palco de protagonismo masculino dramático, fica complexo de imaginar isso como positivo.

Pra completar o pacote, Theresa ainda se mostra uma afiada diretora de atores, tendo em vista que seus atores extrapolam as possibilidades modestas de seus diálogos. Renato Goes, Oscar Magrini, Heitor Martinez mas especialmente Roberta Rodrigues parecem estar muito conectados com o material e seus personagens. A cena onde Renato e Roberta se encobrem é a chave pra queda do filme, mas ao mesmo tempo suas composições de cena e de personagens é muito acertado e elevado. Ainda assim, valeria dissociar os dois lados do projeto e conceber o projeto como duas partes diferentes sobre o mesmo grupo de discussões, mas que aqui no projeto apresentado parece inadequado e desfocado.

Filme visto no Cine PE 2019

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