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Críticas

Cineplayers

Nunca lançado comercialmente no Brasil, As Corças foi um escândalo em sua época.

8,5

As Corças, de Claude Chabrol, nunca foi lançado comercialmente no país, fato imperdoável – na verdade, a obra de Chabrol é vilipendiada pelas distribuidoras brazucas. Les Biches passava no canal de TV paga Eurochannel, na época em que esse canal tinha uma programação interessante. Quem viu o filme no Brasil foi na TV ou alguma fita cassete gravada, pois foi exibido apenas algumas vezes em cineclubes e mostras, o que só faz aumentar o mito em torno da obra. É um dos xodós da revista Contracampo, por exemplo.

Vasculhando a internet, vê-se partes do filme no Youtube, cinéfilos que se dedicam a ele em blogs e sites (28.200 retornos no Google), inclusive na França, onde a película saiu apenas em 2003 no formato DVD, em lançamento discreto para a fama que o filme teve no final dos anos 60, quando de seu lançamento. Isso porque, depois de um início de carreira fulminante, Claude Chabrol, do quinteto original da Nouvelle Vague francesa, teve uma queda de qualidade na produção (haverão outros períodos de baixa doravante) e foi justamente Les Biches que o resgatou para os anos 70. 

Les Biches (que, em francês pode ser tanto os animais como sinônimo de namoradeira) é um escândalo. Trata da história de amor e morte entre duas mulheres, Frédérique e Why, que se conhecem numa cena memorável sobre a Ponte des Arts, em Paris. Why (Jacqueline Sassard, impecável) é uma artista que desenha as corças do título na calçada. Frédérique (Stéphane Audran, musa e mulher do diretor na época), uma ricaça entediada, aproxima-se e deixa para ela, ao lado das moedas, uma nota de 500 francos. “Por quê” (why)? – pergunta a artista. “Você tem um enorme talento”, responde a outra, num cinismo de lascar. Tornam-se amantes e vão se degladiar por toda a vida. Literalmente.

Frédérique de tudo faz para humilhar a bela e provinciana menina, atormentando-a com ordens e contra-ordens irrascíveis, além de seus amigos esnobes. Ela contra-ataca dando em cima de um arquiteto bonito, rico e bem-sucedido, Paul Thomas (Jean-Louis Trintignant), com quem perde a virgindade. Frédérique, enciumada, dá o golpe final seduzindo o arquiteto e se casando com ele. Mas mantém Why em sua casa de campo em Saint Tropez, num jogo perigoso de atração e repulsa, provocação, sexo, lesbianismo, feminismo, luta de classes, competição entre mulheres e tudo o mais que a patalogia humana é capaz. Termina a la Chabrol: em assassinato, crime passional, revelando os desvãos escuros e tortuosos da alma humana. 

Pelos temas explosivos e insondáveis da natureza dos homens, lembra outro grande filme de Chabrol, A Cerimônia (1995, Leão de Ouro em Veneza), quando a analfabeta humilhada de Isabelle Huppert se une à empregada Sandrine Bonnaire para matar a toda uma família de classe média francesa que a empregava no interior da França ao som de Dom Giovanni, de Mozart. É Chabrol, o grande Claude Chabrol, em seu melhor: filmes policiais disformes, sem fórmulas, com personagens inesquecíveis e impactantes, extraordinariamente bem interpretados, dando vazão a suas pulsões soturnas e indizíveis.

Como foi dito, Chabrol teve um início de carreira sensacional, com três filmes soberbos e irretocáveis (apesar do tempo e de serem os primeiros): Na Voragem do Vício (Le Beau Serge, 1958, vencedor do Festival de Locarno), Os Primos (Les Cousins, 1959, Urso de Ouro em Berlim) e As Amigas (Le Bonnes Femmes, 1960), todos antecipando o clima dos anos loucos que descambariam na Comuna de Paris em 1964. Viriam meia dúzia de obras menores até que Chabrol mostrasse seu melhor em O Escândalo (1967) e este Les Biches (1968), filme fundamental, pois será ele que dará início à fase “policial” do diretor. É em Les Biches que Chabrol dá o primeiro passo de seu estilo agudo, incisivo, seco, “cerebral”, cruel para alguns, que anima suas maiores obras.

Estão lá os movimentos de câmera característicos, os longos e elegantérrimos planos com o uso mínimo de contra-planos (Chabrol diz que o excesso deles é coisa de amador), a ambigüidade (nos diálogos, nas roupas, nos cenários, em tudo), a ótima direção de atores (pelo papel, a inesquecível Stéphane Audran de O Discreto Charme da Burguesia e A Festa de Babette venceu o Leão de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim), os poucos mas capitais diálogos, a quase ausência de trama, a crítica fulminante à burguesia decadente com seus valores questionáveis, tensão sexual permanente, a frivolidade e o cinismo da classe média em busca de sua cura do tédio etc. Estava pronto o estilo desse cineasta irregular e brilhante.

O início dos anos 70 foi um período curioso para a Nouvelle Vague francesa. Os dois maiores nomes do movimento, François Truffaut e Jean-Luc Godard, já estavam brigados, além do que os outrora críticos agora diretores não eram mais novidades, estavam sendo copiados por Hollywood (copiados e superados) e seus filmes na maioria das vezes eram então fracassos comerciais. Porém, é quando Eric Rohmer e Jacques Rivette iniciariam suas obras de maior fôlego e Chabrol retomaria a carreira, dando início a uma segunda e interessantíssima fase do movimento.

As Corças é facilmente encontrável na internet para dowload, com legendas disponíveis em inúmeras línguas. Não estou fazendo apologia da pirataria, mas uma defesa da circulação de informação, uma vez que a distribuição de filmes no Brasil obedece a critérios ridículos que privilegiam os filmes sem qualidade e relevância, mas que fazem dinheiro rápido. É possível, assim, furar a barreira da mediocridade pelo menos até que regulamentem o download de filmes pela rede. O custo, no entanto, é muito alto: além da perda da qualidade do filme original, os artistas envolvidos nada ganham e acabam pagando pela hipocrisia dos estúdios, que não abrem seus filmes para comércio na rede, pela incompetência das distribuidoras e até pela mesquinharia de alguns espectadores.

Comentários (1)

Rodrigo Giulianno | segunda-feira, 08 de Outubro de 2012 - 14:57

Demetrius, tudo bem?

Não há referência no filme (A Cerimônia) informando que a personagem de Huppert era analfabeta, mas sim a de Bonnaire.

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