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Críticas

Cineplayers

Somos todos Rosa.

9,0
Rosa está sozinha. Sente-se sozinha, isolada, e Laís Bodansky a filma respeitando a personagem, respeitando sua linha de roteiro. Rosa está sozinha? Ok, então teremos Rosa em planos fechados ou abertos, num canto do quadro, enquanto todo o resto do plano está vazio. Branco. Quase nu. Enquanto Rosa submerge em sua angústia, Lais chega à superfície com um trabalho muito elíptico e aprofundado, embora não pareça, sobre acertos de contas tão internos quanto externos. Laís nunca filmou o distanciamento como aqui, ainda que seus estudos de personagens sempre sejam calcados em desconforto e ruptura. Em Como Nossos Pais, a realizadora paulista observa o universo feminino como nunca, logo mais dona do assunto e cheia de propriedade; Laís sempre foi meticulosa em seus retratos, muito atuais e urgentes. Agora também roteirista, a necessidade de contar uma história tão próxima a si talvez tenha dado a ela a coragem necessária para encarar uma certa introspecção. 

De maneira direta, a câmera investiga Rosa da forma menos intrusa possível. A observação em clima de testemunha ocular só é interrompida quando os polaroides em movimento registram a ausência de Rosa, seu abandono da matéria para entrar em estado de colisão emocional; para o bem do filme, Rosa é pega em plena escuridão, arremessada para esse lugar na primeira cena do filme, quando sua mãe revela que ela não é filha de seu pai. De repente então Rosa não está mais, e precisa reunir elementos que a tragam de volta à bagunça confortável que já habitava: a relação desarranjada com a mãe, o casamento onde só ela aparenta vivenciar uma crise, o papel de mãe que Rosa parece estar sufocada demais para desempenhar. O estudo dessa personagem em particular revela que o turbilhão exterior causou uma estupefação, um torpor... mas Rosa é mãe, mulher, filha, irmã, trabalhadora, sonhadora, amante, ou seja, Rosa é uma mulher do nosso tempo. E precisa vencer os fantasmas porque o mundo cobra isso dela. 

Laís provavelmente conhece esses passos com precisão e entrega um trabalho de direção que reafirma sua categoria como realizadora. Após uma incursão por um universo dito leve e solar em As Melhores Coisas do Mundo, um espaço de excelência volta a ser reivindicado por ela, no que corresponde com sofisticação. No que tange às suas decisões, Lais sublima praticamente todas as possíveis emoções baratas para contar da forma mais enxuta possível uma história de identificação imediata com a plateia, sem nunca deixar de ir além de entregar um bom trabalho, para exatamente elevar uma história até prosaica a um lugar esteticamente arrojado. As elipses focais de suas lentes fazem um belo jogo de esconder para o espectador, escolhendo os pontos de vistas mais inesperados e posicionamentos de câmera nunca menos que criativos. Para além da certeza de estar conversando com uma história de captura certeira, Lais aproveita para propor um requinte em seus planos que nos remete imediatamente ao rigor do seu belíssimo Chega de Saudade, até hoje o trabalho mais ousado dela. Aqui no entanto ela consegue extrair primor do cotidiano, abolindo planos e contra-planos para colocar sua câmera em tripés no apartamento de Rosa e captar várias camadas de inusitado. 

Parece curioso que apesar de toda a excelência de condução, o filme insista em metáforas desnecessárias para demonstrar o estado emocional de Rosa, como se a solidão já não deixasse clara sua desordem interior. Mas aparentemente em determinadas passagens não houve confiança de Laís ou do habitual roteirista Luis Bolognesi em deixar a sensibilidade do público fazer as conexões, então precisamos conferir uma leiteira ferver até transbordar, ou um rasgo de liberdade de Rosa ser definido por um topless em pleno centro paulistano. Outro momento desnecessário é quando, por uns 8 minutos, Rosa sai de cena, mesmo que ela domine a narrativa e as cenas (ela está em todas até aí, e depois daí) durante os outros 100 minutos; fica ligeiramente incompreensível os motivos que levam o roteiro a deixar Dado tomar conta de um filme tão bem centralizado. Ainda que o plot que abre o filme não justifique sua existência, nada disso interfere nas qualidades gerais do longa, ficando esses raros momentos de dispersão temática e inadequação visual. 

No discurso antes de anunciar o vencedor final de Gramado no último sábado, 26, Cacá Diegues disse que a vitória unânime de Como Nossos Pais se devia à temática tão atual e tão bem conduzida, e ao seu elenco irreparável. Pois bem, além do prêmio de filme, Laís se sagrou campeã como diretora, o montador Rodrigo Menecucci levou seu troféu e o trio protagonista da produção fez jus ao discurso de Cacá e arrebatou os troféus. Ainda que um prêmio de protagonista seja estranho para qualquer um que não interprete Rosa dada sua centralização narrativa, é muito bonito ver o lugar onde Paulo Vilhena chegou como ator. Surgido no seriado Sandy & Junior a quase 20 anos, o rapaz virou homem e nunca esteve tão maduro. Já tendo trabalhado com Laís antes em As Melhores Coisas do Mundo e em Chega de Saudade, Paulo brilhou recentemente em Entre Nós' e em O Amor no Divã, onde já tinha tido garra de protagonista. Aqui segura um papel muito difícil de um homem comum, um marido que tenta ser atuante e presente em meio à uma crise. 

Mas o filme de Laís é uma ode a mulher de ontem, de hoje e de amanhã (ainda que as presenças de Jorge Mautner e Felipe Rocha sejam luminosas), e tem seu centro nesse trio - netas, avó e mãe. Sophia Valverde é a pequena menina que bate de frente com a mãe com segurança de adulto, mas fica difícil da menina encarar um embate entre Clarisse Abujamra e Maria Ribeiro. A primeira saiu da serra coroada como coadjuvante, mas ameaça roubar o filme até quando não fala nada; uma presença magnética e muito bem escrita, Clarisse é uma mulher que é pura fibra e decisão, como declara em uma cena "viveu muito bem sua vida", no que sua intérprete deixa muito claro e jamais duvidamos. Mas talvez a principal premiada por Laís aqui seja mesmo Maria Ribeiro, que se resgata como atriz posicionada numa catapulta, que obviamente será disparada. Se quanto a diretora não há qualquer surpresa pela imensa realização, é através de Maria que chegamos com galhardia ao cerne das questões de 'Como Nossos Pais'. É no olhar que passeia entre a certeza de não saber e a imensa vontade de acertar que Maria nos captura para a vida de Rosa e não nos devolve ilesos, seja na profundidade de seus desacertos, seja na relação tão tridimensional com sua mãe. 

Essa captura citada empreendida por Maria e que não livra ninguém é um dos poderes do longa, um filme que desenha e celebra a mulher, o feminino e três fases muito cruciais para cada uma de todas elas, mas que também não deixa de espelhar a humanidade e as fraquezas e os erros e as pequenezas e os desesperos diários e a força que retiramos das entranhas para fazer um café, lavar uma louça, tomar um banho, sorrir, chorar, amar, decepcionar, se despedir, ou seja, viver. E vida todos nós temos, mulheres e homens. 

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