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Críticas

Cineplayers

O que se preserva e o que se escapa na imagem.

7,0
Dentro da cultura indígena dos Yanomami, uma tribo no norte do Brasil, a fotografia, o cinema e qualquer outra forma de registro é encarado com muitas ressalvas. Eles creem que algo deles é levado quando fotografado, que parte de sua essência é subtraída. Logo, a relação deles com o fotógrafo e cineasta Otavio Cury não é das mais cordiais, como revela o interessante documentário Como Fotografei os Yanomami (idem, 2018). Mais do que um estúdio antropológico ou simples documentário, a ideia deste filme é justamente transitar entre as inúmeras funções e possibilidades que se apresentam quando uma realidade do nosso mundo é de alguma forma filtrada pela lente de uma câmera. 

Enquanto muitos encaram o cinema, e a arte no geral, como uma forma de preservação de memórias, de histórias, de pessoas, os Yanomami veem nisto exatamente uma maneira de jamais deixar uma pessoa ir por completo, mesmo após sua morte. Como se um pedaço de nós se mantivesse vivo eternamente, como se o mundo perdesse um pouco de sua característica de constante evolução e modificação, o cinema trai os principais princípios defendidos pelos índios da tribo retratada no documentário. Dentro deste impasse, o diretor Otavio Cury encontra um meio de transitar entre sua arte, sua profissão, sua paixão, e sua necessidade de compreender por meio delas o mundo que existe aos olhos do próximo, sem que com isso esteja incidindo em algo desrespeitoso ou invasivo demais. 

Neste ponto se cruza a possível diferença mais gritante na cultura de índios e brancos: a relação com a morte. Enquanto um lado encara a finitude como algo aterrorizante, o outro a vê como uma possibilidade para algo muito maior e grandioso. Por não encararem a morte como inimiga, os índios se livram do medo dela e automaticamente não necessitam do conceito memorial e preservativo proporcionado pela fotografia e pelo cinema, tão comuns em nossa cultura obcecada pelos registros, pelos fatos, pela preservação do passado. A constante mudança no estado das coisas faz do cinema um ritual quase fúnebre, como muitos cineastas conscientes anteciparam, vide o alemão Wim Wenders em diversos de seus filmes. 

Visando não tirar do olhar indígena o filtro pelo qual procura enxergar toda aquela realidade, Cury vai atrás de inúmeras opções narrativas e visuais que realçam a visão deles, embora inevitavelmente jamais atinja um resultado completamente imparcial como almeja. Quando solicita que agentes de saúde e estudiosos da cultura indígena, brancos, descrevam processos rituais e culturais assimilados durante seus anos de convivência com os Yanomami, logo todo o conceito do filme cai por terra. De uma forma ou de outra, a distância entre os dois mundos só se realça através dos registros do diretor, e aquela realidade supostamente registrada em sua condição mais direta nunca consegue de fato ser compreendida. 

O índio ainda é uma figura folclórica, quase imaginária, na visão do coletivo branco brasileiro. Sua representação é sempre muito deficiente, caricatural, distante de qualquer traço de verdadeira autenticidade. Se Andrea Tonacci conseguiu quebrar essas barreiras ao dar aos índios o poder de controle de suas câmeras e ferramentas no insuperável Serras da Desordem (idem, 2006), muito ainda deve ser feito hoje para o início de uma compreensão mútua, para a criação de uma empatia capaz de aproximar os mundos distantes que ao longo de séculos jamais puderam de fato conviver em total harmonia. Cury pode ter dado alguns passos nessa tentativa, mas a sensação final é de que os Yanomami, no auge de sua sabedoria secular, estão certos em desconfiar de nossas artes e tecnologias como meios capazes de registrar fielmente qualquer realidade que esteja muito além da nossa.

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