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Críticas

Cineplayers

Crueldade rima com veracidade.

9,0
Vladimir é um motorista de táxi sem táxi, frustrado, angustiado, que quer e precisa de uma reviravolta na sua perspectiva. Clivia é sua esposa, tem uma lavanderia no subúrbio carioca onde eles moram, conformada com o 'lugar nenhum' para onde caminham. Regina é amiga de Clivia, uma babá estressada que acabou de perder o emprego, e tem clara convicção de que merece mais da vida. Primo é um amigo de Vladimir que mora com uma mãe controladora, um cara na linha do desajuste social, quase uma bomba relógio. Esse é o quarteto protagonista de Como é Cruel Viver Assim, surpreendente novo longa de Julia Rezende, que leva sua carreira a um novo sacolejo e mostra o quão desperdiçado pode ser um talento se atirado na vala dos blockbusters rasos.

Fábio Porchat e Ingrid Guimarães não são péssimos atores (Entre Abelhas e Entre Idas e Vindas mostram isso), mas Julia esteve com ambos em momentos onde não podia exercer seu ofício com ousadia. E ninguém sabia de suas capacidades até ver Ponte Aérea há três anos atrás. O filme é uma comédia romântica que poderia ser mais uma, mas o roteiro e a sofisticada direção de Julia e o talento dos protagonistas Caio Blat e Letícia Colin fizeram a diferença. Estava demarcado ali que Julia não estava de brincadeira, e quando seu novo longa apareceu na última competição do Festival do Rio ninguém estranhou tanto. O que não podíamos imaginar era o tanto de avanço que ela daria, em sua carreira e nas expectativas gerais futuras a partir de agora.

De cara o filme já mostra a que veio, acompanhando as tentativas iniciais de Vladimir em conseguir uma colocação e ilustrando esse bloco inicial de mensagens subliminares que lançam o protagonista no poço mais fundo. Tem um rebuscamento imagético conseguido pela parceria entre Julia e o fotógrafo Dante Bellutti que não é comum a uma produção de caráter popular, e talvez defina já no mapeamento das luzes e cores pretendidas o lugar onde a diretora pretende ir, que não tira do seu filme a aproximação do público mas dá ao mesmo um produto refinado. A escolha por locações reais em Nilopolis, tradicional bairro da zona norte do Rio, intensifica a estética do filme calcada na realidade e na crueza, sem aferir estereótipos e criando uma atmosfera reconhecível e imersa na credibilidade.

Os diálogos extraídos da peça original de Fernando Ceylão foram mantidos em sua contundência no roteiro escrito pelo mesmo. Com extrema riqueza, os personagens vão além de seus desenhos no papel graças à construção imagética do todo e ao imenso talento de todos os envolvidos, principalmente os protagonistas, que têm para si grandes momentos defendidos com garra e verdade. Se Fabiula Nascimento e Silvio Guindane só reafirmam o talento que todos já sabem existir, Marcelo Valle e Débora Lamm apresentam trabalhos definitivos e que os apresenta a um público novo e exigente, que pode cobrar melhores lugares a ambos. Marcelo passeia por um misto de apatia e raiva contida que se comunica muito com a extravasada Débora em sua cólera constante, que acentua o caráter sedutor da personagem. Um quarteto de tipos multifacetados que encontra um quarteto de atores pronto para atacar em todas as frentes possíveis.

Com o ritmo impecável conseguido pela montadora Maria Rezende, o longa vai trilhando sua narrativa de esquadrinhar uma classe nada assistida de oportunidades e que vê suas ambições reduzidas dia a dia por um punhado de sonhos nunca realizados; dar humanidade e valoração a seres tão marginalizados pela vida, dar realidade a suas interpretações, trazer um universo tão crível quanto inacessível à luz do cinema, que tanto maquia esses seres, e ao mesmo tempo dar leveza a situações periféricas onde sempre é inserido violência e depressão, fazem parte do pacote de acertos dessa joia de Julia Rezende, que mostra uma veia insuspeita de requinte e vitalidade a um cinema já tão cheio de códigos de fácil acesso. Um acerto que merece ser descoberto e celebrado.

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