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Críticas

Cineplayers

Fora de qualquer fórmula passível de análise ou categorização, filme é segunda parte de uma trilogia do diretor João César Monteiro.

7,0

Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza, A Comédia de Deus, do iconoclasta e abusado diretor português João César Monteiro, conta a história de João de Deus, agora empregado numa sorveteria, que, após seduzir as jovens funcionárias do estabelecimento e possuí-las em verdadeiros rituais heréticos de devassidão, desenvolve uma fórmula que transforma o sorvete num dos mais famosos do país, com vistas a exportação e o sucesso mundial.

Ele dava um banho de leite nas meninas e depois o utilizava para fazer o sorvete. Uma delas ficou com vontade de urinar e ele disse que ela fizesse as necessidades ali mesmo na banheira, pois a concentração do ácido da urina era importante para o sabor e, principalmente, para o perfume dos sorvetes, segundo ele o segredo do sucesso de seus gelados. Tanto que as meninas "soltavam uns punzinhos" em cima dos ovos utilizados na fórmula, depois de estarem empanturradas de bombons pelo tarado.

Os pentelhos das meninas, João de Deus (nome popular do papa João Paulo II para o público de língua portuguesa) os coava do leite, os separava e cuidadosamente guardava num caderno chamado “O livro dos pensamentos”. Descoberto, acaba demitido, preso, acusado de pedofilia, leva uma surra do açougueiro local, pai de uma das meninas, e vê seus famosos sorvetes, obras-primas semi-artenasais, serem substituídos pelo ice-cream dos americanos, “aquela mistura da maizena e gelatina feita em escala internacional”.

A Comédia de Deus (1995) é a segunda parte da trilogia iniciada em Recordações da Casa Amarela (1989), seguida de As Bodas de Deus (1998). A Nouvelle Vague francesa está em toda parte. O filme é dedicado a Sérgio Denay, um dos diretores da revista Cahiers du Cinéma (73 a 81) e fundador da revista Trafic. O empresário francês interessado em importar para a França os sorvetes chama-se Antoine Doinel, nome do personagem interpretado por Jean-Pierre Léaud em cinco filmes de François Truffaut. Outro crítico da revista, Jean Douchet, aparece como um dos personagens. Não há dúvidas: Monteiro é filiado ao movimento da Nouvelle Vague francesa por afinidade do cinema de autor, conceito que ele próprio vai levar aos últimos dos limites.

Não há nada que justifique os 162 minutos de duração do filme, quase insuportável em seu andamento lento, enormes pausas, cenas longuíssimas, nunca cortadas, feitas sempre em planos-seqüência. É duro ver o filme, uma das obras mais radicais já feitas no cinema – Monteiro fará pior em Branca de Neve, suprimindo-lhe as imagens, deixando as duas horas e meia de filme correrem em plena escuridão – uma praga libertária rogada contra a religioso, a política, as leis, a moral e, por fim, o ridículo humano e seus preconceitos.

Monteiro é o diretor, roteirista e ator principal, mas é pouco dizer isso, pois parece filmar a si próprio em seus impulsos obsessivos. Hilariante, nunca perde a pose, mesmo quando diz os piores palavrões. Sua postura cética e sua fala culta estão sempre a ridicularizar conceitos – chamava os pêlos pubianos das adolescentes de “fios de Ariadne” (referência à deusa que dá a Teseu o fio para sair do labirinto do Minotauro). Mesmo nas piores situações, jamais perde a serenidade, como quando é currado em plena rua e levado ao hospital com a face destruída. No leito do hospital, ainda é capaz de filosofar.

De certa forma, Monteiro é a versão para o cinema de Bocage, o escritor português blasfemo e anticlerical do século 18, também culto e extravagante, dono de uma obra libertina e profana. João de Deus, o personagem cinematográfico, está sempre a dizer frases famosas da Bíblia, fazendo ironias com santos e imagens sacras (sua sala de jantar era toda pintada com anjos, mais parecia a Capela Sistina) e trocadilhos infames: ao receber pelo correio o que seria um pêlo (imenso) pubiano da rainha Vitória, ele diz “God Shave the Queen” (“shave”, em inglês, depilar, não “save”, salvar).

Impassível, cheio de modos aristocráticos, a figura magra do diretor e seu alter-ego cinematográfico desafia com grande fleuma a moral cristã, em especial a católica. Seus filmes estão fora de qualquer fórmula de análise ou categorização – são a exceção. É a prova de que o cinema pode ser sim liberdade de expressão, diversidade, ao mesmo que tempo que reflexão profunda. Enfim, tudo que essa arte vem desaprendendo a fazer desde o fim dos anos 60.

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