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Críticas

Cineplayers

Simon, o “trendsetter” (aquele que não é como a gente).

3,0
Não há separação silábica que consiga alcançar ou decompor o tremor que Me Chame Pelo Seu Nome (Call Me By Your Name, 2017) havia instaurado, ou minimamente reposto à ordem maníaca e panóptica em que a intelligentsia política militante fincou e tem fincado seus dentes: como é pos-sí-vel que, dentro de um seio familiar, haja tamanha aceitação da (homos)sexualidade filial? Sem entraves homéricos, estouros de batidas de portas, lágrimas escorrendo a um ritmo de três cenas por conflito? Ora, uma família branca, europeia, afeiçoada à cultura filosófica de seu próprio continente, e em meio ao verão – vejam só! Dos ultrajes à sétima arte, e ainda mais à realidade, o mais nefasto!

É um além-mar, um adensamento obscuro diante da impossibilidade do “happy ending”: é inconcebível, até mesmo incorreto em todas as instâncias pensáveis, que, na cultura global que metralha subjetividades sob o lema do “eu passei por muitas coisas...”, e em ritmo serial, subsista um sopro não de felicidade, não de bonanças diametralmente opostas a simplesmente tudo o que tem acontecido; de pura e simples aceitação daquilo que se é. Alguma força opositora precisa esmagar-nos, e sem ela, segundo... (quem?), não há vida, não há sujeito formado, não há força a se extrair desse passado – que precisa ser ou conter algo de muito – horroroso ou hiper-realista. Sim, a pergunta que subjaz: realidade de quem? Surge, aparentemente muito orgulhosa de sua conquista de marketing, a outra face do ilustre mundo. Antes, aliás, não seu oposto, mas seu “inverso similar”.

Pois eis que, também no epicentro de grande circulação das ficções que se debruçam sobre o desabrochar da homossexualidade e seus impactos relacionais com o mundo mais próximo, há Simon. Simon, aquele que, depois de filmagem protocolar sobre a rotina suburbana perfeita e as relações quase cintilantes com os coleguinhas de turma e espaço escolar, e como o próprio lamenta na narração em voz over, “não é como você”. Sua irmãzinha prepara panquecas elaboradas no café da manhã com quatro lindos copos de suco e numa cozinha hiper-equipada; sua mãe é a psicóloga boazona, compreensiva das maiores profundezas do inconsciente, de QI explicitamente elevado em relação à média humana e que havia sido, durante a época escolar, a oradora popular pelos motivos mais nobres; seu pai, como já foi mais que possível visualizar, quase enjoativo na tarefa instantânea de construir o arquétipo, o quarterback musculoso e bonitão que – pasmem! – estimula noitadas com seriados de conteúdo adulto para toda a família. A máxima que rege a amarga vida de Simon ganha, então, duplo sentido, um grotesco, o outro bifurcado: não, a vida do garoto definitivamente não é como a nossa (entenda-se: a de nossa grandessíssima maioria); não, independente de sua sexualidade presa ao armário, e por centenas de motivos também pipocando aos montes nas quase duas horas que se seguem, sua angústia sexual não se aproxima de qualquer realidade razoável ou tangível. 

Pressurizado em chantagem emocional por um colega babaca (este, obviamente, se revelará um “cara doce, engraçado e gentil” mais tarde) que ameaça expor a toda escola sua troca de e-mails com um outro gay também enrustido, em troca de ajuda para aproximar-se afetivamente de uma de suas melhores amigas, a narrativa segue a espiral de uma farsa degenerativa que ameaçará implodir as relações com seus três grandes amigos: para não expor a si mesmo nem o rapaz virtual por quem está se apaixonando, Simon traga seu círculo mais íntimo numa rede de relações inventadas que guardam, no mínimo, metade da carga cômica da obra. Sendo a outra metade a típica diagramação americana corrente para o humor, ou seja, a série de eventos vexatórios que não apenas relançam constantemente seus alvos e feitores em circunscritos estereotipados ainda mais cansativos – os adolescentes “bullys”, o nerd desesperado, a garota sexualmente humilhada, o queer cult de suéter –, mas também acabam por tornar o tom cômico um disparo sem-fim de frases e sacadas sagazes cuja única veracidade é a própria enunciação e o valor que têm por si sós, porque nem parecem destinadas a alguém em específico, nem se dispõem a modular o próprio ritmo e ao menos tentar, minimamente fingir que sua função não é esta que só busca o gargalhar rápido e serial.

Tudo bem, tudo bem: engolida, então, a tragédia por detrás do humor afetado (não se quer dizer, aqui, em hipótese alguma, que o riso é interdito ou que não há cenas de fato jocosas, mesmo que bem espalhadas), já que parte da fruição cinefílica, hoje, parece circular em torno do perdão, decidimos por seguir aquela que deveria ser a espinha da trama, e que, no entanto, é tudo diante de que ela corre, assustada, incapaz, inerte: como é pos-sí-vel que o âmbito mais íntimo de vivência de uma descoberta e experimentação sexual se resuma a esquetes de pesquisas do Google sobre “como se vestir como um gay?”, mesmo que numa outra tentativa de enfiar o humor, precisamente quando seu personagem mais que escancaradamente vive um senso estético que podemos chamar de comum, ou quando suas preocupações de vestuário, comportamento, gestualidade e gostos perpassam uma espécie de contra-corrente de tudo o que a nossa cultura, mas sobretudo a americana, cristalizou como gay ou queer?; que espécie de obra que se leve infinitesimalmente a sério pode apelar para um pai que não se vende como machão, e que a cena também esquemática que vem a prova-lo é a de um abraço (sim, um abraço!) de pai para filho? 

Pior: que paradoxo digno da física complexa ou da não-lógica lacaniana pode explicar como um filme cuja função – mais na frente há de se atestar – é a de vender a libertação sexual pode recair constantemente na vala abjeta de calcificar, solidificar, tornar quase inquebrantável como um diamante agora não mais o estereótipo, mas a imagem enfadonha do homossexual que é efetivamente e o tempo inteiro gay (na acepção de “feliz”), colorido, dançante, imantado por divas pop, fissurado em músculos e machos etc.? É uma replicação infinita da irrealidade mais fantasiada e pela qual qualquer sensibilidade, dos sensores políticos mais histéricos à criança mais desacostumada à heterogeneidade(s) de mundos e estéticas, se envergonharia. Não há, em efeito, qualquer brecha que permita a um personagem ser a si mesmo, sem que este devir em cena se injete de um desespero em vender alguma ideia, como se a nova especialidade de grande parte do cinema agora se prestasse a construir temas, espelhos de como o real deveria ser. Um passo além da publicidade e um mergulho em flecheiro no marketing social. 

Mas não lhe basta. Pobre Simon, rejeitado Simon, num lampejo enfurecido que só poderia partir do coração mais hiper-romântico, talvez mais romântico que as próprias circunvoluções históricas que conjugaram tal termo, decide por tornar-se o trendsetter escolar-blogueiro, assume-se abertamente e, bam!, estamos diante do lançador de modas em incumbência messiânica que parte do individual para ganhar uma apontadinha de dedo orgulhosa de uma garota escorada num armário e com quem nunca havia possivelmente cruzado olhares. 

A câmera filma-o de cima, as multidões agora o aplaudem, ouve-se mais “Simon” do que qualquer outra palavra da língua. A mãe, como a tarefa-cristal também lhe cabe, garante que ele merece t-u-d-o o que quiser. Agora, como se as mãos da riqueza interna e a solidez de segurança sexual que abre oceanos repuxassem um círculo num programa de auditório que precisa cambiar as cenas, o garoto prova a novíssima batida de coco da irmã e dispara andando para a escola. Os amigos de sempre, agora mais fortes do que nunca, todos em seus devidos lugares. Tudo foi perdoado, esquecido. O Simon gay suplantou aquele hetero. As pontas devoram a si mesmas em delícias resolutivas. A bem da verdade, todo o filme estava ali na filmagem montada que ele e o pai entregam de presente de casamento à mãe: um cachorrinho saltita nos braços de uma criança, o sol incendeia em multicores bolhas de sabão, o gramado cresce e se rejubila abaixo das carícias e beijos apaixonados dos progenitores. Curioso que não muito tempo atrás este mesmo pai tenha acusado um personagem qualquer da televisão, durante aquele mesmo programão familiar, de ser “frutinha”. Com Amor, Simon?

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