Inusitado encontro amoroso entre dois grandes ícones da cultura rende cinebiografia.
As cinebiografias, que sempre existiram no cinema, parecem ter se tornado, ao lado dos blockbusters adolescentes repletos de efeitos especiais, o grande filão comercial desta primeira década dos anos 2000. A lista de sucessos comerciais (e de crítica, muitas vezes) é imensa, e o formato parece inesgotável. De astros da música a mestres da ciência, toda grande celebridade, da mais variada esfera de atuação, parece estar fadada a ser agraciada com um filme contando sua vida.
Coco Chanel que o diga. Estilista e grande arquétipo do perfil da mulher moderna, no mesmo ano de 2009, ganhou nada menos do que duas louváveis cinebiografias, produções de grande orçamento e destaque nas salas e festivais de cinema. Primeiro veio Coco Antes de Chanel (Coco Avant Chanel, 2009), longa que como o próprio nome diz, trata-se dos anos de formação, da tragetória individual que a levou a se tornar o grande mito feminino do século XX.
Coco Chanel & Igor Stravinsky (idem, 2009) parte de uma abordagem oposta. Não tão interessado nos caminhos que levaram Coco ao sucesso, o filme tem como viés um estudo da vida íntima e da personalidade excêntrica da grande estilista francesa. Ainda relativamente desconhecida, em 1913 Coco vai até a desastrosa e vaiada estreia de “Sagração da Primavera”, do compositor russo de música erudita Igor Stravinsky. A obra, que só muitos anos mais tarde veio a ser reconhecida como obra-prima da música, choca a todos pelo seu caráter de vanguarda, sua afronta ao sistema tonal, em consonância com as revoluções eminentes na linguagem artística que viriam a marcar o início do século. Após a Primeira Grande Guerra (elipse temporal representada no filme com trechos de imagens originais da guerra em preto e branco), o compositor é exilado, e os dois se reencontram em Paris. Ela já bem sucedida financeiramente, convida-o para, com sua família, se estabelecer na sua mansão nas redondezas da capital francesa.
É lá que se desenrola um estudo da personalidade atípica de Chanel. Manipuladora e envolvente, seduz o compositor a olhos vistos de sua esposa e seus filhos. E ali mesmo, entre um ensaio e outro no piano, à luz do dia, tem início uma tórrida relação amorosa de grande tensão sexual entre estes dois grandes ícones culturais da história. Independente e auto-confiante, a estilista o atrai pela postura tenaz e absolutamente destemida diante do mundo, algo que para ele, introspectivo e calado, era um desafio constante. Entre um encontro e outro, Stravinsky dá continuidade ao trabalho de suas composições, enquanto Chanel busca a fragrância perfeita no célebre perfume Chanel nº 5, ainda hoje bastante cultuado mundo afora.
Chanel é interpretada por Ana Mouglalis, numa atuação muito mais convincente e real do que a versão “ameliepouliana” de Chanel vivida por Audrey Tatou em Coco Antes de Chanel, ela que parece fadada a ser eternamente um fetiche de indies e pseudo-alternativos. Stravinsky é interpretado por Mads Mikkelsen, ator dinamarquês que se tornou conhecido do grande público ao encarnar o grande vilão russo no recente 007 – Cassino Royale (Casino Royale, 2006), atuando ao lado de Daniel Craig e Eva Green.
A direção do filme coube a Jan Kounen, que além de experiência com longa-metragens, foi um grande diretor de videoclipes. Talvez pela sua origem, chama a atenção o virtuosismo na movimentação da câmera ao longo do filme: raramente temos planos estáticos, há uma predominância muito grande de steadicams seguindo os personagens em movimentos circulares, dando em muitas vezes uma visibilidade de 360º do ambiente da cena. A direção de arte, no que compete a reconstituição dos loucos anos 20, os chamados roaring twenties do pós-guerra, é bastante eficaz, aliada a uma fotografia que pende para uma recriação de uma estética de película carregada de tons envelhecidos de verde e pardo.
Mais do que um mergulho no comportamento e intimidade de grandes personalidades históricas, Coco Chanel & Igor Stravinsky é um retrato razoavelmente maduro que nos traz pessoas de rara personalidade (e não seria gratuidade usar o termo “gênio” em ambos os casos) com grandes missões, destinadas a incumbir suas vidas a serviço de um bem maior, a construção de um legado. Certamente foi esse fardo, e a consequente solidão, que os uniu.
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