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Clube da Luta

(Fight Club, 1999)
8,6
Média
1963 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Sonho e realidade, conformismo e anarquia, violência e lirismo batem de frente em uma crítica contundente às formas de viver que mantém os homens atados à insatisfação.

10,0

“Por muito tempo Tyler e eu fomos grandes amigos. As pessoas estão sempre perguntando se conheço Tyler Durden”.

O ano era 1999. Brad Pitt já havia atuado o suficiente para que se soubesse que ele seria bem mais do que o dono do sorriso perfeito, que oitos anos antes, havia abalado o mundo cinematográfico ao aparecer em Thelma & Louise, o longa de Ridley Scott. Suas interpretações em filmes barra pesada como Kalifornia (1993),  Seven – Os Sete Crimes Capitais (1995) e Entrevista com o Vampiro (1994), só para citar alguns, já deixavam claro que talento o moço tinha. Helena Bonhan Carter, vinha de uma carreira segura que incluía teatro, televisão e cinema. A atriz inglesa, então já tinha sua imagem vinculada às adaptações de época e escolhas perfeitas. Foi Ofélia em Hamlet (1990) e foi Caroline Abbott em Uma Janela Para o Amor (1991), mas, para mim, Carter será sempre Elizabeth, a personagem do clássico do terror revivida por ela, ao lado de Kenneth Branagh, em Frankenstein (1994). Já Edward Norton era o queridinho da crítica e um dos atores mais comemorados da época. De sua atuação como Aaron Stampler, o psicopata de As Duas Faces de Um Crime (1996) até a indicação ao Oscar por A Outra História Americana (1998), Norton tornou-se unanimidade inquestionável.

Foi contando com esse trio central de atores, que na virada do século, David Fincher encarou a tarefa de dirigir um dos filmes mais cultuados da atualidade. É bom que se diga que o reconhecimento que o filme tem hoje foi uma conquista bem distante das opiniões da época de lançamento. Clube da Luta chegou a assustar o público, ficou pouco tempo em cartaz e mesmo hoje ainda é incompreendido e incompreensível para muitos. O fato é que Fincher, que já contava com um clássico no curriculum, Seven (no qual dirigiu o próprio Pitt), sabia o que fazia e que o tempo se encarrega de fazer justiça, pelo menos em alguns casos.  

Publicado originalmente em 1996, Fight Club, o romance escrito por Chuck Palahniuk e posteriormente roteirizado por Jim Uhls, conta a história nada convencional de um investigador de seguros, o personagem/narrador interpretado por Norton, cujo nome parece ser “Jack”. O emprego da narração, além de obedecer a estrutura da obra literária, diz respeito a uma das marcas do estilo pessoal de Palahniuk. O escritor freqüentemente se utiliza de enredos circulares, com personagens que contam eventos passados que os levaram às circunstâncias do tempo presente. E é aí que está a pista para entender Clube da Luta. 

Acomodado em seu bom emprego,  Jack vive entre sua sala individual de trabalho e seu apartamento decorado com todas as quinquilharias que lhe dá na cabeça adquirir.  Vez ou outra viaja a trabalho. Aparentemente não há problemas com ele, mas as aparências enganam. Jack sofre com crises crônicas de insônia que o deixam acordado por meses, em algum lugar entre o estado desperto e a sonolência.

Numa tentativa de driblar a ansiedade, o protagonista começa a freqüentar reuniões de terapia grupal junto à vítimas de câncer, tuberculose e outras doenças graves.  Ironicamente, é em meio aos sobrevivente e desesperados que, se passando por um deles, Jack encontra algum alívio para seu mal. Após as reuniões ele consegue conciliar algumas horas de sono. Sua alegria, porém, não dura muito. Nas reuniões surge Marla Singer (Helena Bonhan Carter), uma desajustada, com tendências suicidas, que vive para zombar da morte. Para Jack e Marla, o contato com aqueles que estão no limite alivia o peso de suas existências vazias de sentido, mas ele vê nela uma testemunha de sua farsa.

Em uma de suas viagens a trabalho Jack conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um homem no mínimo estranho, que ganha a vida como vendedor de sabonetes. Ao retornar ao lar e verificar que seu apartamento, com todas os seus pertences, voou pelos ares em uma misteriosa explosão Jack, sem saber o que fazer, acaba por telefonar para Tyler. Eles se encontram em um bar e Tyler convence Jack a lutar com ele. Assim, lhe mostra um outro estilo de vida, baseado na  liberação dos instintos agressivos. Ambos se tornam inseparáveis, passam a dividir uma mansão, literalmente caindo aos pedaços, e juntos fundam o Clube da Luta, que não é nada mais, nada menos, do que um clube formado por homens desejosos de se socarem até não poderem mais em violentas lutas corpo a corpo. 

O espírito do clube é restabelecido por Tyler a cada nova sessão ao declarar suas regras: “1) você não fala sobre o Clube da Luta; 2) você não fala sobre o Clube da Luta; 3) quando alguém disser "pare" ou perder os sentidos a luta acaba; 4) só dois caras em cada luta; 5) uma luta de cada vez; 6) sem camisa, sem sapatos; 7) as lutas duram o tempo que for necessário; 8) se essa é a sua primeira noite no Clube da Luta, você tem que lutar”. 

Embora clandestino, e assim devendo continuar, o clube ganha novos adeptos a cada noite e se torna um sucesso. Jack e Tyler não são os únicos homens dispostos a dar vazão às suas necessidades mais primitivas por meio de socos e mais socos. A pista deixada por Palahniuk, então faz sentido, remete aos pensamento anarquista, mais precisamente à crítica anarco-primitivista que prega o retorno aos estados primitivos de vida como forma de libertação de sistemas opressores.  Os adeptos desta linha de pensamento desprezam a sociedade industrial, o modo de vida consumista. Para eles as relações de trabalho e as próprias regras de convivência social pervertem a essência natural do homem ao inibir seus instintos, ao vinculá-los a uma cultura que os padroniza. 

O que não fica claro é exatamente como se dá o desdobramento de personalidades. Qual teria sido a formação de Jack? Suas reações são meramente instintivas ou reflexo de experiências vividas? Jack não tem um passado declarado e isso é intencional. De qualquer forma, fica caracterizada a existência de  um estado patológico que se impõe, como instintos reprimidos que não podem ser mais contidos. 

Marla surge como o ponto de convergência entre Jack e Tyler e o conflito se estabelece entre ambos quando o segundo começa a dar sinais de que seus planos vão muito além da criação do clube, quando passa a organizar seu "exército" pessoal e o "Projeto Caos". A revolução anárquica deixa de ser pessoal e passa a atacar as instituições, assumindo o projeto desconstrutivo da realidade estabelecida. Assim, as divergências entre Jack e Tyler remetem à eterna luta entre o homem civilizado e o ser primitivo que habita seu inconsciente.

A história combina muito bem a narcolepsia (distúrbio do sono de ordem neurológica) e a anarquia, gerando uma obra inteligente que trata, em essência, de transcendência e libertação, de romper com os ditames opressores de um modo de vida ao qual nos acostumamos a seguir e que nos parece o único possível. O tema, extremamente sério, é desenvolvido com muita ironia, doses certeiras de puro humor negro e coroado por uma montagem que surpreende. A lição de moral não é explícita (e seria aquela esgotada em Surplus, de 2003) e pode até passar totalmente desapercebida.

Os atores fizeram um ótimo trabalho, estão completamente à vontade na pele de seus personagens. Carter é a tradução mais perfeita de um Tim Burton de saias. A canastrice que Pitt empresta a Tyler o torna de uma vilanice  quase imperceptível. Já Norton é especialista em interpretar tipos desajustados tornando-os adoráveis. Faz isso misturando modos transgressores a uma doçura cativante. Outro bom exemplo do estilo “Jack” de Norton é o seu Harlan de Vale Proibido (2005), filme pouco conhecido, mas interessantíssimo. Também merecem nota a participação de Meat Loaf  (Robert 'Bob' Paulson ) e do até então desconhecido Jared Leto (Angel Face), ambos membros do clube. 

A beleza visual não é uma das características de Clube da Luta. David Fincher construiu um filme violento, esteticamente feio, com cenários, situações e imagens beirando o bizarro e uma surrealidade de mau gosto em certos momentos. Os efeitos sonoros, que chegaram a concorrer ao Oscar, encontrando pela frente o arrasador Matrix (1999), é cheio de nuances e mesmo sons quase imperceptíveis em meio à trilha sonora que caiu sob medida. Fincher brinca com mensagens subliminares, tanto visuais quanto sonoras e o filme chega a ser contraditoriamente belo ao extremo pela originalidade com que retrata a situação humana. No geral é uma produção ousada e corajosa onde tudo soa como uma enorme provocação ao público, que após relutar se rendeu à admiração, fazendo justiça a um trabalho notável. 

Comentários (1)

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