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Críticas

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Terrence Malick e a realização nas telas de um preceito estético americano de dois séculos.

8,5

Quando se pensa na grande arte visual norte-americana da era pré-industrial, os Estados Unidos sempre se retrataram em grandes paisagens, com natureza predominante, na maioria de suas pinturas. Nos quadros, montanhas e cachoeiras, trabalhadores sisudos, a religião onipresente, a arquitetura circunspecta: foi assim que os Estados Unidos se viu nas artes desde a descoberta até o século 20.

Essa forma de expressão artística, essencialmente americana, chegou ao cinema por meio do recluso e misantropo Terrence Malick, que transpôs para as telas a outrora ideologia artística numa obra-prima visual, Cinzas do Paraíso (Days of Heaven, 1978). Com a ajuda inestimável do fotógrafo espanhol Nestor Almendros (o favorito de Eric Rohmer e François Truffaut), fez um filme que é considerado por muitos com uma das mais belas fotografias de cinema já feitas. Toda a beleza plástica da obra pode ser agora apreciada numa impecável edição em blu-ray da The Criterion Collection, inteiramente restaurada a partir dos originais e aprovada pelo diretor, pelo editor e até pelo operador de câmera, o hoje também conhecido fotógrafo John Bailey (Almendros morreu em 1992 em decorrência da Aids).

Malick estudou filosofia em Harvard e foi jornalista (para duas badaladas publicações, Newsweek e New Yorker) antes de se dedicar ao cinema – estudou no American Film Institut com David Lynch e Paul Schrader. Sua obra contemplativa estava bem ancorada na nova geração que surgia nos anos 70 na corrente de Robert Altman: reformular as fórmulas do cinema e revisitar alguns mitos sobre a família. Em Cinzas do Paraíso, armou-se com uma gigantesca câmera de 70 mm e foi-se para os campos da província de Alberta, no Canadá, onde fez o seu retrato íntimo de um triângulo amoroso com ares de épico americano, na qual precisou de dois anos para conseguir terminar a montagem.

Malick sempre dirigiu filmes históricos e em todos há um narrador, mas a narração nunca conta a história – em Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line, 1998) eram trechos de cartas que os soldados americanos enviaram aos parentes e amigos. Neste Days of Heaven, são os pensamentos de uma menina, irmã do protagonista, em parte divagações fora do tempo da ação do filme, o que só acentua o caráter filosófico e metafísico da obra. Rico em detalhes (mostra ferramentas, máquinas, roupas, comidas, tudo de muito perto) e bastante físico, quem vê o filme nunca separa natureza dos seres humanos, o trabalho dos trabalhadores – parecem todos parte de uma mesma amálgama indissociável.

É, portanto, a realização nas telas de um preceito estético que durou dois séculos nos EUA e foi o motor criativo de um sem número de artistas. Os diálogos do filme estão recheados de citações bíblicas, frases não terminadas, praticamente declamadas pelo elenco (principal ou não) de forma estilizada e muitas vezes sem nenhum sentido, trazendo alusões apenas indiretas à história.

Alguns intelectuais americanos foram ainda mais longe e viram o filme como uma expressão da ideologia do “destino manifesto“ (os americanos da época acreditarem que eram ungidos por Deus para criar o novo país, que se tornaria a maior nação da Terra) ou mesmo uma celebração do puritanismo: a redenção a Deus por meio do trabalho, do esforço individual. Talvez por isso o título original do filme, Days of Heaven, evidentemente irônico - nenhum paraíso naquele sofrimento todo, mas ninguém contestaria. O título original saiu da Bíblia, Deuteronômio, capítulo 11, versículo 21: "Para que se multipliquem os vossos dias e os dias de vossos filhos na terra que o Senhor jurou a vossos pais dar-lhes, como os dias de paraíso sobre a terra". O curioso é que no Brasil, país católico e barroco da culpa e danação, preferiu um título mais dramático, "Cinzas no Paraíso".

Mas Cinzas do Paraíso é também seu fotógrafo, Nestor Almendros, que estendeu longamente nas telas a "hora mágica", os poucos minutos após o pôr-do-sol antes que a noite caia. Ele e Malick criaram uma curiosa coreografia, dando muito movimento à câmera nas cenas que mostram os campos e o trabalho (sempre inquieta) e parada quando mostra a casa. O efeito é óbvio: o lar como centro da vida, imóvel, pedra angular, sólido. Tudo parece flutuar ao lado daquela um tanto soturna e escura construção neoclássica, ponto duro de cinza e preto no oceano de amarelo do trigo que jorra por toda a tela. A casa é uma referência ao quadro House by the Railroad, do maior pintor americano, Edward Hopper.

Mas o filme de Malick está longe de ser uma apologia à religião e ideologias americanas – logo ele, leitor e tradutor do alemão Martin Heidegger. Pelo seu trabalho, venceu a Palma de Ouro de melhor diretor no Festival de Cannes, enquanto Nestor Almendros ganhou o Oscar de melhor fotografia. Mallick, que antes fizera um filme, Terra de Ninguém (73) e um curta, Lanton Mills (1969), fez apenas dois depois: o citado Além da Linha Vermelha (1998, ou seja, 20 anos entre um filme e outro) e O Novo Mundo, além de ter ajudado a produzir outros cinco e escrever alguns outros poucos. Nos contratos, proíbe que sua imagem seja divulgada. É o último dos excêntricos da década de 70, o que só faz aumentar a curiosidade e a admiração em torno dele.

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