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Críticas

Cineplayers

Um filme raro de se ver.

8,5

Você que tem um bom lugar pra morar, nos dê a mão, ajude a construir nosso lar. Para que possamos dizer juntos 'a cidade é uma só.'”. Embalado por estes versos, o governo de Brasília realizou, na década de 70, uma operação de higienização da pobreza do centro da então jovem capital nacional - o que, é claro, não passou de uma varreção do problema pra debaixo do tapete. Vendendo a ilusão de uma vida melhor, a campanha relocou os moradores de baixa renda do centro de Brasília para cidades em seu entorno, movimento que fundou a Ceilândia, cenário e objeto de A Cidade é uma Só? (idem, 2012), o incrível filme de Adirley Queirós que arrebatou o prêmio do Juri na mostra Aurora em Tiradentes.

Através de uma diluição de impressionante naturalidade entre o documentário histórico sobre o fato e uma ficção que busca, acima de tudo, registrar sua influência no presente e inflexões no futuro desses moradores (vale lembrar que por mais dicotômica que seja esta opção narrativa ela interessa muito pouco diante do que o filme realmente tem a expressar), Adirley faz um filme ousado e por vezes politicamente incorreto, cujas observações são defendidas com muito bom humor, sem recorrer a teses verborrágicas ou lobotomias ideológicas, em um tom que, por maior que seja a diversão que o filme promova, não deixa de reforçar a melancolia embutida em cada uma das ações registradas.

Existe em A Cidade é uma Só? uma consciência de cinema capaz de fisgar o público imediatamente (é o filme que mais provocou gargalhadas e aplausos em Tiradentes) e, para que isso ocorra, o diretor vai em busca do que há de mais essencial em uma narrativa cinematográfica: o prazer de se contar uma boa história, com personagens fortes e carismáticos aos quais é possível admirarmos instantaneamente. Não há muita relação direta, mas é um filme que, à sua maneira, lembra os dois longas de John Carpenter com o icônico anti-herói Snake Plissken, filmes políticos improváveis de serem encontrados na Hollywood apolítica de hoje - e no cinema em geral.

Mas não há porquê complicar: o que realmente impressiona em A Cidade é uma Só? é a facilidade com que o filme se desvia do truque narrativo inicial para atingir uma simplicidade absoluta no diálogo que estabelece com o espectador - uma relação que, acima de tudo, reforça a admirável autenticidade de seus personagens e das situações registradas. O núcleo de Nancy, uma mulher que, quando criança, participou do coro que entoava a canção tema da campanha, é sempre interessante, mas é difícil negar que a grande força de A Cidade é uma Só? vem mesmo é da história de Dildu, o operário da Ceilândia cansado do descaso dos políticos com o povão que resolve investir, mesmo sem recursos financeiros, em uma campanha para a eleição a deputado distrital de Brasília - através do fictício Partido da Correria Nacional (PCN).

Com a ajuda de seu cunhado, Zé Antônio, protagonista de um terceiro núcleo do filme (sobre a especulação imobiliária que cerca os grandes centros), e uma proposta de campanha gângsta, cujo jingle é um grudento rap sonorizado por gatilhos e tiros (a sinopse oficial do filme vem de uma fala do próprio cunhado sobre a concepção destes apetrechos de campanha), Dildu vai às ruas em um carro arrebentado, com o tanque de gasolina quase seco, para discutir sua plataforma política e distribuir panfletos que remetem ao símbolo da campanha de erradicação da pobreza do governo nos anos 70 – símbolo que agora pertence à sua ínfima campanha a deputado, à tentativa de um humilde representante do povo de conseguir alguma voz no Brasil de hoje.
 
Fala rápida, língua solta e energia infindável são as mais notáveis características de Dildu. E, embora saibamos que os esforços dele morrerão na praia (ou melhor, na sanga), a câmera de Adirley acompanha o personagem com uma devoção tão encantadora que só resta ao espectador entregar-se completamente a ele. É através de Dildu que A Cidade é uma Só?, além de uma obra de contundente expressividade político-social, também se transforma em um filme estruturado sobre momentos, frases e ações memoráveis, à maneira das grandes obras do cinema nacional de outrora. Atinge, assim, uma pungência que parecia erradicada do cinema brasileiro desde os anos 70 – sem que o filme precise citá-los de nenhuma maneira, podemos lembrar de Nelson Pereira dos Santos, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci e tantos outros autores que souberam utilizar o cinema para olhar ao nosso país de forma desafiadora e incisiva, fazendo dele um catalisador cultural e social de sua época.   

E não há sequência que evidencie melhor esta pungência do que quando, próximo ao final, o carro velho de Dildu quebra e ele resolve seguir sua campanha pelo bairro a pé. Presenciamos ali um momento único no cinema contemporâneo, talvez não apenas nacional – um momento em que vemos um autor correndo riscos e se posicionando diante do tema que aborda, algo cada vez mais raro de se ver. Assim que Dildu chega à rodovia pavimentada e dá de frente com a grandiloquência da máquina política sendo utilizada para a campanha de Dilma Rousseff à presidência nacional, Adirley provoca (e este é o termo, provocar) na imagem um atrito arrepiante (em que ficção e realidade conflituam a céu aberto), forte o suficiente para desafiar toda uma noção de democracia e de país, de um jeito preciso como discurso algum seria capaz de fazer.

A dúvida de Adirley que dá nome ao filme parece encontrar ali uma resposta natural. A cidade nunca foi nem nunca será uma só; o país nunca foi nem nunca será um só. E, embora consciente disso, Dildu segue seu rumo pelo terreno baldio que posteriormente servirá a um grande empreendimento imobiliário para a verticalização residencial (solução encontrada para o problema de espaço das periferias – e para, talvez, manter as pessoas dentro dela?). O filme fecha com o caminhar exausto de um homem do povo que, embora fruto da ficção, ou justamente por isso, é capaz de manifestar a indignação e a esperança fatigada de quem olha para nosso sistema político sem se contentar com um simples “vote nulo”, como se assim estivessem se posicionando  frente ao problema. E se o final da trajetória de Dildu fica em aberto no filme, sem aparente solução, é porque a questão ainda tem muito a render – dentro e fora do cinema.

Porque os grandes filmes não encerram ali, num mero e arbitrário the end.

Comentários (17)

Caio Santos | sexta-feira, 28 de Fevereiro de 2014 - 17:59

muito boa noticia 😋

Ravel Macedo | sexta-feira, 28 de Fevereiro de 2014 - 19:42

rpz, só assim pra ver mesmo! ta entre os proximos

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