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Cidadão Kane

(Citizen Kane, 1941)
8,8
Média
1127 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A trajetória de Kane e de Welles ao lado do cinema

10,0

Assista Cidadão Kane no Telecine

Inspirado na vida do magnata da imprensa mais notório do século XX, William Randolph Hearst, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) é hoje conhecido como o melhor filme da história do cinema. Ao longo de décadas, nunca foi esquecido ou ficou datado, e até hoje gera um incomum interesse do público em torno não só do filme em si como também de tudo o que o levou a ser tudo o que é. Recentemente, David Fincher decidiu se aventurar pelos bastidores da criação desse clássico com o seu Mank (idem, 2020), focado especialmente na perspectiva do roteirista Herman J. Mankiewicz, mas todos sabem que o nome que fez a fama da produção foi o diretor Orson Welles, que também interpreta o protagonista Charles Foster Kane. Em seu filme de estreia, Welles decidiu experimentar tanto e arriscar tanto que sem querer acabou por fundamentar toda a linguagem moderna do cinema como é conhecida até os dias atuais, oitenta anos depois.

O que mais existe o mundo são textos sobre Cidadão Kane, tentativas consecutivas de listar qualidades e proezas que fizeram o filme perpetuar um legado tão extenso e longevo, sobrando pouco a se acrescentar em mais um novo artigo ou crítica. Esse filme chegou naquele patamar raro em que ao mesmo tempo em que se esgotaram todos os ângulos pelos quais analisa-lo, ainda assim parece que ninguém foi capaz de realmente fazer jus a tudo o que ele é e significa. Afinal, estamos aqui falando de cinema, e as palavras são as maiores traidoras da imagem, essa entidade que em movimento se converte em uma história e se desenrola ao vivo cada vez apertamos o play, e que fala por si só, sobrevive sem a necessidade da definição e da análise. E ainda que Cidadão Kane conte com ótimos jogos de palavras e vários dos diálogos mais incríveis da história do cinema, suas imagens são autônomas e sozinhas se sustentam em uma narrativa que só pode existir enquanto cinema.

Então, já que eu mesmo concluí até aqui todo o despropósito de se tentar analisar Cidadão Kane, explico que venho por meio deste texto apenas comemorar os 80 anos desse que, ainda não seja o meu favorito de todos os tempos, é sim o grande filme do cinema, ou pelo menos do século XX. Começo pelo quanto impressiona o domínio que Welles tinha sobre a imagem, mesmo sendo seu filme de estreia. Ainda que experiente no rádio e no teatro, de onde com certeza herdou uma noção de narrativa, composição cênica, atuação e direção, não deixa de ser espantoso que ele tenha entendido de tão imediato as diferenças de linguagem quando se trata de cinema, usando todos os recursos e técnicas próprios para transmitir ideias, construir elipses, manipular a atmosfera, controlar o tempo. Se para todos os efeitos foi D.W. Griffith quem inventou a linguagem cinematográfica com O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), foi Welles quem finalmente a modernizou de vez para acompanhar a era do cinema sonoro e para se conectar a uma América muito mais amargurada e cínica.

Suas inovações com as imagens foram essencialmente experimentais, visto que ele testou muitas coisas durante as gravações, como tamanhos de lentes, jogos de luzes e sombras, escolha de ângulos e interseções que lhe permitiam ir e vir no tempo sem a necessidade de prévio anúncio. Intuitivas, as imagens por si só denunciavam as passagens temporais como num fluxo de consciência que até então somente fora visto em material literário. É difícil imaginar que por trás de algo tão experimental exista o rigor de um cineasta que, mesmo estreante, já dominava com aparente facilidade esse novo tipo de arte. Mais complexo ainda por refletir um personagem real e discutir uma guerra que estava em andamento, com um protagonista de moral duvidosa e cheio de conflitos freudianos. Ele cantava desde aquele momento o que hoje sabemos tão bem: o poder está na informação, ou na forma como você a manipula. Assim como o próprio ato de fazer cinema e compor imagens de forma a manipular as percepções do espectador, o jornalismo de Charles Foster Kane tem essa característica da adulteração de fatos e verdades. Welles, não só por atuar, mas também pela maneira de dirigir, se equivalia em ambição a seu próprio personagem principal.

Claro que por trás disso há um autodidata que com certeza aprendeu não só por fazer ali na hora como também demonstrou ser um exímio observador e aprendiz de outros mestres. Para se alcançar o novo, é preciso antes dominar a tradição, e toda a primeira hora de Cidadão Kane é um desfile de estilos, gêneros e escolas, sem perda de ritmo e sem parecer um remendo grosseiro ou sem coesão. Desde a abertura que contempla uma casa no topo de uma montanha escura remetendo ao horror gótico da Hammer, seguido por uma narração documental que vai nos contar resumidamente tudo que vamos assistir do início ao fim, até chegar de fato à figura de Kane e mergulhar nessas alternações de flashbacks, toda a narrativa do filme possui uma harmonia que a razão não é capaz de explicar. Nessa escolha há inclusive uma metalinguagem com o próprio tema do jornalismo, pois boa parte daquelas informações sobre Kane recolhidas a partir do documentário inicial são aos poucos traídas e desmentidas quando o filme adota os jogos de perspectivas das pessoas que o conheceram.

Se a obra de Welles acompanhou ao longo das décadas toda uma evolução da história do cinema americano clássico, em especial na apropriação do noir para refletir sobre aquela América do durante e pós Guerra, o diretor sempre enxergou à frente e nunca se conteve em fazer igual aos demais. Ele próprio percebeu o fim iminente do noir clássico e entoou seu réquiem através de A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), para depois expandir os horizontes e fazer adaptações literárias ou documentários experimentais mundo afora, em obras desafiadoras como Verdades e Mentiras (Vérités et Mensonges, 1973), no qual retomou o assunto-chave de Cidadão Kane sobre o questionamento e manipulação de fatos. É estranho pensar um filme de 1941 tenha sobrevivido até hoje, direta e indiretamente influenciando tudo o que veio depois dele, e que ao mesmo tempo seja o autorretrato de um artista inquieto que foi capaz de fazer de seu primeiro trabalho a síntese de tudo o que ele faria e de tudo o que ele era.

Comentários (2)

André Araujo | domingo, 02 de Maio de 2021 - 10:08

De tanto ser dito como o melhor filme da história, essa própria narrativa meio que se saturou, passando até a ser substituída para uma em que o filme é superestimado. Daí a importância de uma revisão como essa do Heitor. Muito bom!

Jackie | domingo, 21 de Novembro de 2021 - 06:17

Vocês realmente gostam disso aqui?
Pessoal, podem confessar ao lado de mim não tenham medo: o filme é um porre!.

Jonas BSJ | domingo, 21 de Novembro de 2021 - 13:21

Não, você é um porre.

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