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Críticas

Cineplayers

O Horror Seminal.

9,0

O horror no cinema sempre foi o arauto de medos individuais e coletivos que vertiam-se em imagens. Pense-se nos cenários com linhas de fuga distorcidas de O Gabinete do Doutor Caligari ou nas sombras negras projetando-se sobre pedra branca no Nosferatu, de Murnau, que refletiam de forma inconsciente um país mergulhado na miséria. Ou nos “horrores científicos” cinquentistas refletindo questionamentos como os limites éticos da ciência, o medo atômico, a bipolarização política do mundo. Ou os horrores góticos da Hammer, pós-Grande Depressão, refletindo um espírito geral de derrota, miséria e decadência. Sempre tivemos o gênero levantando questões estéticas e morais, metaforizando e sintetizando monstros sociais em sobrenaturais. No cinema industrial, o horror é sempre procurado e incensado quando tem o poder de concentrar em si o zeitgeist de uma época.

E não há como não bater na tecla que seria impossível traçar qualquer historiografia de horror que se pretenda séria sem citar o cinema fantástico italiano, que tomaria o mundo de assalto no final da década de sessenta até mais ou menos o início da década de noventa. Nesse meio tempo, a Itália conseguiu erguer uma linha de produção de filmes comerciais que geraram grande retorno e alcançou uma reputação cult com vários seguidores.

Podemos apontar várias razões para tal sucesso: a hiper-estilização do terror, apostando em composições psicodélicas, em voga à época com o auge do movimento hippie; a violência gráfica extrema que, ainda que tenha precedentes americanos (os filmes de zumbis de George A. Romero, os horrores precários de Hershell Gordon Lewis, os primeiros exploitations), encontrou voz e vez nos filmes dos italianos, que abusavam de objetos cortantes, sangue e amputações; o erotismo da maioria das narrativas, que muitas vezes chocavam elementos de sexo e morte (Eros e Tânatos, desejo e repressão, etc.); anos mais tarde, muito do filme slasher viria ali, trocando o ritualismo dos assassinatos pela singularidade iconográfica dos assassinos.

O Ciclo do Pavor, de Mario Bava, é uma obra que incentivou a mudança de paradigma, sendo um próprio filme algo transitório per se. Idolatrado por Martin Scorsese e Federico Fellini, a obra, descrita pelo Taste of Cinema como “quando o horror gótico encontra uma viagem ruim de ácido” , funde elementos tanto do horror do período clássico da Hammer - forasteiros que são testemunhas junto ao espectador de que uma vila, na virada do século, apresenta algo de errado com suas sucessivas mortes.

Na mesma época que Roger Corman adaptava Poe trazendo o rural como elemento de ameaça e não como esperança bucólica e fuga da selvageria das grandes cidades, Bava ajudava a aumentar a insegurança que já tínhamos desse tipo de narrativa e de suas tradições estéticas - puxa-se o nosso tapete do chiaroscuro preto e branco e exagera em cores de tons estranhos - verde brilhante, o laranja crepuscular, o azul “congo” algo púrpura como representante do exotismo local que a testemunha não sabia da existência em seu próprio país. Muito do choque estético de  O Ciclo do Pavor vem justamente do seu anti-realismo, da iluminação pensada como algo progressivamente e necessariamente aberrante.

Bava volta todo o seu filme na atmosfera, tanto na composição visual quanto em sua narrativa de descortinamento, de pouco a pouco dizer adeus à lógica e à verossimilhança, na inserção de violência explícita onde antes só era sugerida, na corrupção de ambientes clássicos e tradicionais em monstros cromáticos ameaçadores - as escadas em caracol infinitas e coloridas, os corredores e portões lambidos do laranja inflamados: as janelas embaçadas e paredes envelhecidas; névoas, nuvens, vegetaçãos, rochas e tumbas em contraluz; os corredores confusos, labirínticos, muito profundos, muito longos, com linhas de fuga cegantes e esquinas mergulhadas na escuridão; as sombras que engolem os personagens implicando uma necessária falta de ambiguidade para o filme de terror.

Essa ambiguidade implica que, para perdemos a segurança, temos primeiro que perder a confiança que luz refletida se reflete de forma convencional ali; que o tempo (a noite que não vai embora, o avanço inexorável e sádico do perseguidor, como a menina que brinca com a bola e observa por janelas, o que praticamente interrompe a narrativa para construir ameaça), o espaço (a viela escura que engole perseguidores em um canto e a luz do corredor que o revela em outros; os caminhos de fuga que aprisionam, as escadas que parecem não ter fim, o exterior transformado em desertos de névoa) e os dois juntos (quando Bava repete a cena do homem que tenta fugir correndo pelo corredor e abrindo a porta de forma ininterrupta, encerrando um personagem numa prisão não só relativa ao espaço mas também tirando o início e o término de suas ações) não funcionam como deveriam funcionar ali. Neste filme de Bava, todos os recursos do cinema podem ser distorcidos para além da distorção humana. Enquanto seres lógicos que exigem coerência, pouco poder dar mais terror ou agonia do que a suspensão dela.

Em português, “o ciclo” parece não ter fim ou propósito, aprisiona todos ali, e para cair na mesma basta ver tudo de novo que teremos que enfrentar a mesma progressão espiralada de voltas e voltas - distorção de realismo visual e construção espacial e temporal. No original, a “Operazione” dá conta de algo de caráter efêmero, de uma sessão ininterrupta de pavor onde Bava, como acontece no título original de Banho de Sangue, Reazione a Catena (Reação em Cadeia), entrega o que propõe, compondo uma pequena sinfonia de terror e violência com picos distorcidos que pouco a pouco desmancham a convencionalidade. Em inglês, “Kill Baby Kill” é refletido à nascente obsessão ritualística pelos filmes de matança, repetida maniacamente, singular e celebrada enquanto a sala está escura e a projeção acontece. É curioso ver que as percepções que as distribuidoras tiveram do filme resumem o caráter primordial de causar medo, de apropriar-se de uma violência e uma atmosfera desestabilizantes. de trazer consigo elementos que já conhecíamos e de apresentar percepções e propostas mais ambiciosas para o filme de horror. O Ciclo do Pavor é um horror seminal, muitos universos em só, mutável em si como a era que foi feita, uma peça concentrando em si parte da história estética do cinema de horror, convidando quem assiste a ver, de forma quase sem precedentes, como é contemplar nossos piores medos vertidos em pura concentração e diluição atmosférica.

Comentários (7)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 30 de Maio de 2015 - 10:14

Já confessei aqui a heresia não ser profundo conhecedor da cinebiografia de Bava - erro que estou reparando aos poucos -, mas esse aí é clássico! Filme capaz de insandecer qualquer um. Belíssimo texto do Brum - o que já virou pleunasmo....

Augusto Barbosa | sábado, 30 de Maio de 2015 - 12:59

Muito disso tudo que o Brum falou já está bem presente em O Chicote e o Corpo (especialmente a relação imbricada entre sexo e morte / desejo e repulsa), que, pra mim, é a maior das obras-primas de Bava. Não que este não seja gigante também, claro.

muito do filme slasher viria ali, trocando o ritualismo dos assassinatos pela singularidade iconográfica dos assassinos
Pqp, algo tão simples/óbvio, e eu não conseguia diferenciar estruturalmente um do outro.😏🙄

Ravel Macedo | sábado, 30 de Maio de 2015 - 13:23

O mais atmosferico de todos!

Augusto concordo sobre Chicote e O Corpo, quando se diz de sexo e morte. Mas ainda prefiro Ciclo do Pavor.

Ravel Macedo | sábado, 30 de Maio de 2015 - 13:25

Chicote e o Corpo ainda acho o mais contudente nesse sentido.

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