8,0
A diretora baiana Letícia Simões passeia suas lentes pelos rios que circundam a ilha de Marajó, pelos personagens que a vestem, e pelas histórias que a construíram com as cores que vemos hoje. Mas toda essa pesquisa vai além da sociologia pura e simples e se transforma em cinema quando Letícia decide ir além das imagens e promove também a palavra. E não qualquer palavra, mas a voz da empatia - quem tem a construção do resgate do outro hoje em dia? Quem promove os renascimentos necessários da cultura de um país que faz questão de não promover ou resgatar a sua? Letícia, cineasta jovem, faz em seu longa algo que poucos fazem em geral: aproveita o seu momento para jogar luz no próximo.
O próximo em questão vem a ser Dalcidio Jurandir, poeta e escritor esquecido que passa por um processo de revisão histórica e reinterpretação de resgate, e tudo passa por O Chalé é uma Ilha Batida de Chuva e Vento, um longa de urgência humana e cultural. Espécie de primo de Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo, a diretora observa Marajó pela construção do hoje aliada ao olhar do ontem, com a ajuda da sensibilidade de Dalcidio, que nos anos 30 precisou aceitar um emprego de inspetor escolar na região distante para prover sua família em formação. Então Letícia consegue traçar o paralelo entre o modus operandi local na nossa década e lá atrás naquela, com os relatos do poeta sobre sua atividade realçando a vida do povoado nos dias atuais, e promovendo discussão sobre o que de fato mudou em 80 anos.
O pulo do gato da diretora foi querer mais do que o registro social do trabalho de Dalcidio, que obviamente tinha muito mais a oferecer que sua depuração do ambiente pedagógico e costumes locais. De posse de cartas enviadas por ele a sua amada Guiomarina, o filme tem por mérito dar corpo ao homem além do poeta. Com o amor respingando em cada linha, não temos dúvida de cada nova linha narrada no longa, que ao mesmo tempo que realça um homem sensível a bordo de um trabalho quase burocrático, também mergulha numa delicada história de amor provisoriamente a distância, embarreirada pela necessidade dos primeiros anos, ainda sem reconhecimento.
O texto dessas cartas não apenas costura o longa (de montagem competente) como dá o tom da sutileza narrativa proposta por Letícia, que não se arregaça em mais nada que não o amor incondicional desse homem por sua jovem estrutura familiar, com isso mapeando não apenas uma ilha que há 8 décadas atrás apenas simbolizava seu afastamento. O filme traduz o sentimento de uma época, uma ode a luta do homem comum e sem recursos pela manutenção social, que hoje e sempre é tratada sem nenhum florir existencial e, graças ao talento impregnado no filme, consegue tocar e emocionar o espectador com seu suave passeio por aquelas pessoas tão diferentes, as das imagens e as das palavras.
Letícia, que também é escritora publicada e já trabalhou como roteirista e fotógrafa em outros longas, consegue realizar um belo pedaço de cinema através do que já existia. As cartas de Dalcidio Jurandir são extremamente cinematográficas e parecem emoldurar um pedaço de Marajó e do passado, colocando Letícia na posição privilegiada de pintar o que ele construiu. Através da projeção, vemos a narração em off de Letícia sair do registro metódico do profissional até abraçar o afeto que perpassa toda a correspondência e realizar muito mais do que um registro de viagem ou um painel sobre a existência não contemporânea; através das suas imagens e dos registros humanos de Dalcidio, Letícia compõem beleza em registros cotidianos encharcados de amor puro e dor profunda.
Visto no Olhar de Cinema de Curitiba
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