Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O espetáculo na depressão.

9,0

O musical foi um dos primeiros gêneros que surgiu na Hollywood falada. Curiosamente, ele teve uma utilização e desenvolvimento muito diferentes daqueles do primeiro cinema musical alemão, onde o gênero seguiu uma ordem de motivação que parecia muito lógica, criando-se a partir do teatro musical da mesma época, com adaptações de Brecht e operetas que funcionavam basicamente como uma peça filmada. O musical hollywoodiano dos anos 1930 estava tematicamente muito próximo do universo do teatro, vaudeville e do show-business como um todo, mas logo adquiriu, dentro desse universo temático, uma estética e estrutura de encenação próprias.

Diferente do alemão, o primeiro musical hollywoodiano não era o teatro, era sobre o teatro e, assim sendo, era particularmente cinematográfico. Os sapateados de Fred Astaire encontravam lugar na trama de qualquer jeito que desse, sem sair da realidade dos personagens, nomes renomados do show-business de seu universo ou prestes a se tornar renomados. O musical de Busby Berkeley ou simplesmente coreografado por ele, como é o caso de Cavadoras de Ouro, segue a mesma lógica narrativa, mas é sua representação cênica do teatro que empurra o cinema musical para o fantástico e o impossível que irrita tanta gente até hoje.

Os personagens de Cavadoras de Ouro não começam a cantar “do nada”, como muitos personagens de musical são acusados de fazer. Eles são artistas em performance. Só que a performance deles é claramente impossível no lugar em que supostamente estaria. Não apenas nenhum teatro seria capaz de comportar a estrutura cênica dos números de Berkeley como a coreografia inteira não faria sentido, porque ela é inteiramente justificada por pontos de vista possíveis apenas ao público do cinema, auxiliado pela fotografia e montagem. De que adianta, para o público de teatro, para quem, dentro da lógica narrativa, o espetáculo é dirigido, todos um arranjo megalomaníaco se a ele só é possível um ponto de vista? A coreografia de Berkeley, por exemplo, costumava formar com seus dançarinos formatos desenhados que só poderiam ser compreendidos se vistos de cima. Que diegese teatral justificaria essa coreografia?

Outra coisa que me encanta em Cavadoras de Ouro, esta uma questão mais específica a esse filme, é a maneira com que lida com a crise de 1929. O universo excessivo do entretenimento foi o primeiro e maior afetado pela falta generalizada de poder de consumo. Foi nesse momento, por exemplo, que o Vaudeville foi de vez enterrado. O cinema, e principalmente o cinema musical e de gênero, da época foi acusado várias vezes de ser escapista. Eu acho que realmente o seja, embora seja importante discutir o que entendemos como escapismo e se o cinema inteiro (e não apenas uma parte dele) não poderia ser encaixado na palavra.

De qualquer forma, a ideia de que o entretenimento é uma maneira de escapar da crise é explorada profundamente por Cavadoras de Ouro. O filme, no lugar de fugir da temática da crise, é sobre o papel do entretenimento na crise. O primeiro número do filme, We’re in the Money (“Nós Estamos no Dinheiro”), mostra as personagens vestidas em fantasias sofisticadas cantando sobre ter muito, mas muito dinheiro. Logo depois, elas são avisadas de que seu espetáculo não poderá estrear por falta de financiamento. Enfim, descobrimos que estão todas há um bom tempo desempregadas. É uma sucessão narrativa fantástica, absolutamente política!

Cavadoras de Ouro vai mais longe na sua observação do momento histórico e é menos velado na crítica a ele quando o filme segue adiante. A sua última grande sequência musical é o Remember My Forgotten Man (“Lembra-se do meu homem esquecido”), sobre o abandono sofrido por ex-militares no período de entre-guerras. A letra dizia algo do tipo “Lembra-se do meu homem esquecido? Você pôs um rifle em sua mão. Você o mandou para bem longe. Gritou hip-hooray. Olhe só para ele hoje”.

Cavadoras de Ouro é o que o primeiro musical de Hollywood tinha de melhor, e perdoem-me se não sinto a mesma empolgação pelos sapateados de Fred Astaire e Ginger Rogers (que são deliciosos, ainda). Mas Cavadoras é a maravilhosa, cômica, agridoce fábula da depressão americana. Se escapa da dor e do sofrimento de uma geração, é ao olhar de frente para o desemprego total, sua causa e consequência.

Comentários (4)

Conde Fouá Anderaos | terça-feira, 03 de Março de 2015 - 17:31

Busby Berkeley = Gênio. Belo escrito Castanha. Rua 42 anda precisando de uma crítica aqui também.

Faça login para comentar.