Quão pessoal pode ser uma crítica cinematográfica? O quanto conseguimos analisar uma obra com total isenção dentro do tema escolhido? Letícia Simões entregou seu primeiro longa metragem há dois meses atrás no circuito, O Chalé é uma Ilha Batida de Vento e Chuva, que estreou no ano passado no Olhar de Cinema, de onde saiu premiado. Letícia vai dessa vez ao encontro do próprio universo depois de visitar o poeta Delcidio, elevando ao máximo o seu alcance. A câmera está voltada pra si mesma, sua mãe e sua avó, um trio de mulheres muito mais parecidas do que possamos imaginar, e talvez por isso nutram tantos conflitos, a maioria sem previsões de resolução mas que todos são capazes de serem identificados, e inerentes a qualquer um. Filme-memória, desses tão extremamente pessoais que vazam e acabam sendo não apenas assimilados como identificados pelo alheio.
Letícia lembra da casa de verão, sua mãe não. A partir dessa análise, Casa transborda sua narrativa da tela para o espectador, encontrando respaldo na situação familiar de cada um de nós, mas também se comunica cinematograficamente sozinho. Heliane tranca suas memórias em armários e não pretende reabri-los, armários ou memórias. Não lhe agrada o passado, que não convive bem com o seu diagnosticado transtorno de bipolaridade. Heliane não consegue perdoar a mãe nem se entender com a filha, é uma personagem de raiz incomensuravelmente trágica, sempre a beira do fundo do poço. Letícia filma a própria mãe sem conseguir independência de julgamentos; na tela, o conflito é óbvio. Nas mensagens lidas, no entanto, a mágoa arrefece e a conexão se faz. De longe, o amor enviesado de mãe e filha ganha linearidade - como tantos amores. A distância reconecta os laços difusos que a proximidade não suporta.
Ao contrário da forma como filma a mãe, Letícia vê Carmelita com compaixão, estética e emocional. A avó da diretora tem um histórico de repressão que desembocou na própria filha, que viu sua ruína psicológica florescer ainda jovem, graças a falta de tato da mãe... que Heliane reproduz com a filha. Em cena, a matriarca tem mais de 90 anos e a placidez típica da idade. Ainda assim, persegue o perdão: "pede a sua mãe pra abrir o coração pra mim", sinaliza Carmelita. Em cena, Letícia filma o despojamento de sua avó sem máscaras e repleta de suavidade. Na noite de Natal, um mesmo plano confronta avó e mãe, do mesmo lado e tão opostas. A face da mágoa encontra a face da resignação, faíscas expostas e um dado de incompreensão. Teria Letícia o direito de filmar sua avó... sua mãe... seus interiores... à magia do cinema não há proteção, e mais uma vez nos deparamos com a exposição de corpos ao escrutínio público. Ao cinema, tudo é perdoado.
Se as memórias de sua mãe são prisioneiras dela própria, a diretora não pretende seguir esses passos. Nenhum desses passos. Toda a herança genética de desamor contínuo morre em Letícia. Se a mãe reprime, ela expõe; se a mãe explode, ela enternece; se a mãe progrediu reproduzindo os erros, ela interrompe um ciclo com suas decisões, atuais e futuras (como externado em diferentes passagens). "filha amada, idolatrada... eu tenho depressão e você é uma das culpadas", Letícia decide conscientemente romper essa dinâmica de dubiedade e trata com muita certeza seu rumo. Filmes são divãs para muitos cineastas, a maioria das obras analisa o interior de pessoas com o dom de transformar dor em poesia. Letícia Simões parte da forma bem resolvida que suas lembranças se construíram para compreender e acessar um mundo que não é o dela, mas que a gerou. Investigando os aromas e as texturas do próprio quintal, a diretora emociona ao acessar as questões diárias que nossos demônios internos nos fazem acessar.
Com a exceção da evidente trilha sonora que é utilizada nas cenas de reconexão através da história pictórica de sua família, o acerto maior da realização de Casa é ir além do arquivo íntimo da realizadora, universalizando o palco feminino de ações e sutilmente contando o momento de corte da estrutura escravagista brasileira - e talvez fosse saudável abordar até mais. Em seu lugar, Letícia torna a sua família acessível e passível de imersão, através de identificação genuína.
Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba
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