Ao longo de toda a história do prêmio, o Oscar ficou conhecido tanto por agraciar algumas das grandes obras cinematográficas de todos os tempos quanto por esnobar outras, dando preferência a filmes de qualidade, na opinião de muitos, inferior à dos vencedores. A lista é longa: o também ótimo Como Era Verde Meu Vale (How Green Was My Valley, 1941), por exemplo, superou o ousado e inovador Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), que só obteve reconhecimento anos depois, sendo eleito por décadas seguidas o melhor filme já realizado; Gente como a Gente (Ordinary People, 1980), deixou para trás nada menos que Touro Indomável (Raging Bull, 1980), considerado por muitos o melhor trabalho de Martin Scorsese; e o apenas simpático Shakespeare Apaixonado (Shakespeare in Love, 1998) jogou por terra as esperanças de Steven Spielberg ganhar mais uma estatueta principal com o favoritíssimo O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998). E isso só pra citar alguns.
O ano de 1982 também é considerado como o perpetrador de mais uma injustiça. Naquela premiação, Reds (idem, 1981), Num Lago Dourado (On Golden Pond, 1981) e Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, 1981) foram preteridos diante de um azarão britânico: Carruagens de Fogo (Chariots of Fire, 1981). O filme dirigido por Hugh Hudson sobre um grupo de corredores se preparando para disputar as Olimpíadas de 1924 caiu no gosto dos votantes da Academia, que deram nada menos do que quatro questionáveis estatuetas à produção, incluindo também a de Melhor Roteiro para Colin Welland.
Não é difícil entender os motivos pelos quais Carruagens de Fogo é considerado como um exagero do Oscar. Por mais que a produção tenha suas qualidades e valores, trata-se de um filme no máximo correto, formal ao extremo em sua linguagem e temática. Hoje, especialmente, Carruagens de Fogo parece ainda menos interessante, apostando em um tom de inocência em sua abordagem que parece ter perdido espaço no decorrer dos anos e das mudanças de uma sociedade que, para o bem ou para o mal, tornou-se mais crítica e cínica. Se a sua tentativa de valorizar a força do espírito humano acima de todas as coisas funcionou bem há três décadas, atualmente ela soa apenas, pela falta de palavra melhor, ingênua e boba.
O grande momento de Carruagens de Fogo, aliás – ou pelo menos aquele pelo qual a obra é mais lembrada –, ocorre logo em seus primeiros minutos, antes mesmo de o espectador conhecer qualquer um dos personagens: é a clássica (e infinitamente parodiada) cena dos atletas correndo na praia ao som da inesquecível trilha de Vangelis (essa, sim, premiada com justiça), enquanto a câmera de Hudson procura cada um dos protagonistas, apresentando-os sem dizer uma única palavra. Mais do que os Oscars recebidos, essa é a sequência que marcou Carruagens de Fogo para a posteridade, destacando-se em um filme que raríssimas vezes se mostra capaz de apresentar algo realmente diferenciado.
Situado no período pós-guerra, a produção flerta com o tema da reestruturação do país, porém, sem jamais aprofundá-lo. A questão – vista rapidamente no início do filme com a presença de coadjuvantes feridos em combate e em alguns diálogos – logo acaba sendo deixada de lado, enquanto o roteiro passa a dirigir seu foco a diversos outros assuntos. Em seus mais de 120 minutos, Carruagens de Fogo faz comentários sobre classes sociais, xenofobia e, principalmente, religião, falhando, no entanto, exatamente por atirar para todos os lados; parece querer falar demais sem ter nada a dizer. Os temas são tratados de forma rápida, superficial – exceto, talvez, a religião –, e jamais fica claro o que Hudson ou seu roteirista querem realmente falar ao trazer à tona esses assuntos.
Da mesma forma, o roteiro também trata levianamente boa parte das subtramas presentes em Carruagens de Fogo. Basta ver, por exemplo, a questão envolvendo Lidell e sua irmã, que não deseja ver o irmão correndo por acreditar que ele deveria seguir seu chamado e se tornar um missionário: as cenas envolvendo os dois são rápidas e apressadas, jamais conseguindo traduzir em tela a grandiosidade do dilema pelo qual o personagem está – ou, ao menos, deveria estar – passando. Algo semelhante pode ser dito do romance entre Abrahams e a atriz, que surge completamente desassociado de qualquer senso de realidade, parecendo pertencer mais a um desenho da Disney do que a um filme sério e baseado em fatos reais: basta um olhar para os dois se apaixonarem perdidamente.
A irregularidade na estrutura do enredo também pode ser percebida em outros pontos, como, por exemplo, na construção da rivalidade entre Abrahams e Lidell. Durante boa parte do filme, ela parece ser o verdadeiro núcleo dramático de Carruagens de Fogo, a partir do qual todo o restante da obra será desenvolvido. Contudo, mesmo que cenas como a de um jurando que irá vencer o outro no futuro, os atletas acabam por jamais ter a tão aguardada “revanche”, em um anticlímax que acaba prejudicando o resultado final do filme. Aliás, ao final, Abrahams e Lidell parecem grandes amigos, sem que essa relação jamais encontre respaldo no que havia sido apresentado anteriormente.
Esse, na verdade, é outro problema crucial de Carruagens de Fogo. A primeira cena traz dois dos personagens no funeral de um dos ex-colegas, dando a entender que realmente teria havido entre eles uma amizade verdadeira, uma camaradagem, que durou por muitos anos. No entanto, isso não acontece: jamais são construídos laços que reforcem a aproximação entre os personagens, que parecem mais dedicados a si mesmos do que aos outros. Assim, quando um deles dá lugar a outro em uma corrida ou quando se abraçam efusivamente após uma vitória, o espectador simplesmente não entende ou não compartilha de tais sentimentos, diminuindo a força e o impacto almejado por essas cenas.
E se há essa lacuna no estabelecimento das relações, muito disso se deve ao próprio desenvolvimento dos personagens. Hudson e Welland tratam todos como pessoas valorosas, inspiradoras, corretas. São quase semideuses, perfeitos. Não há complexidade nos protagonistas. Sim, o roteiro traz uma espécie de background para eles, apresentando a questão de que um corre porque se acha escolhido por Deus enquanto outro o faz para provar que um judeu merece ser respeitado, mas isso acaba sendo o único elemento definidor dos personagens, impedindo que eles se tornem pessoas reais, de carne e osso. Para isso, contribui ainda o fato de que o elenco de Carruagens de Fogo é formado por atores nada mais que medianos, sem carisma ou grande capacidade dramática: ao invés de elevarem seus papéis, eles se submetem aos limites impostos pelo roteiro (não é à toa que, Ian Holm, o único ator que consegue despertar algum interesse pelo seu personagem, tenha sido o nome solitário a alcançar uma carreira respeitável entre todo o elenco).
Mas o grande problema de Carruagens de Fogo, e que realmente incomoda o espectador em diversos momentos, é a falta de sutileza tanto de Hudson quanto de Welland em tentar passar a ideia de que este é um filme para se inspirar. Ao invés de se preocuparem apenas em contar uma história na qual as atitudes dos personagens transmitam essa sensação, eles optam por superlotar a obra de falas artificiais que tentam convencer a plateia desse fato. Assim, o que se vê em tela são personagens que não param de dizer coisas do tipo “ele é um homem de princípio” ou “sua corrida é uma extensão de seu caráter”, em diálogos forçados, expositivos e excessivos que buscam convencer o espectador do valor dos protagonistas enfiando esses conceitos goela abaixo.
Por outro lado, justiça seja feita, Hudson é bastante hábil na condução não apenas das cenas de corrida, mas de toda a preparação que leva a elas. Calmamente, utilizando sem cerimônias o recurso da câmera lenta, o cineasta acerta ao mostrar em mostrar em detalhes o que ocorre antes de cada prova, desde os competidores compartilhando o mesmo vestiário até os pequenos buracos que eles cavam no chão para dar impulso na largada. E é esse trabalho, muito mais do que a identificação com os personagens, que cria expectativas para as corridas, gerando interesse no desfecho delas – vale dizer ainda que esses momentos também são filmados de maneira competente, com o diretor por vezes apostando em um só plano durante toda a prova.
É interessante notar que Hugh Hudson também se permite algumas experimentações, mesmo que Carruagens de Fogo seja estruturado de modo clássico, quase sem dar espaço a inovações. Em duas ou três cenas, o cineasta aposta em longos planos, como na apresentação dos calouros, na qual sua câmera passeia de forma fluida entre diversos personagens. Da mesma forma, Hudson demonstra possuir bom conhecimento da linguagem cinematográfica ao posicionar, em uma cena envolvendo a execução de um hino, o personagem de Lidell no ponto mais forte de seu quadro, levando o espectador a encontrá-lo sem dificuldades, ainda que em meio a diversas outras pessoas.
Tendo a religião como parte crucial da narrativa – é força motriz por trás dos personagens e também foco principal de diversos momentos (como a montagem construída sobre uma oração em off) – e tratando seus protagonistas de forma unidimensional, até mesmo infantil, Carruagens de Fogo é um filme que pode ser considerado ingênuo e simplista em sua abordagem, evitando estabelecer conflitos ou buscar qualquer grau de densidade. Com algumas belas cenas, é uma obra que até deve funcionar no sentido de elevar um ou outro espectador. No entanto, seus inúmeros problemas o prejudicam enormemente, não enganando ninguém.
Ou talvez, apenas, o Oscar.
Só a análise em relação ao Cidadão Kane já demonstra como crítica de cinema é bastante bipolar. Numa época um determinado filme é uma bosta, uma tremanda porcaria, para que depois de alguns anos se torne cult. Ou vice e versa. Recentemente li por aí a crítica de Django, o primeiro, ser um ótimo flme, com coisas a serem exploradas por diversos cineastas. Anos atrás, filmes do tal western macarrônico eram risíveis, bregas e não valiam as letras destinadas a eles. E assim caminha Beverly Hills e seu entorno. O lixo de hoje será aproveitado como sustentável amanhã.
Nunca levei muito a premiação do Oscar, porque, como sempre, são escolhas de pessoas. E pessoas têm suas preferências, as quais fogem da parcialidade que deveria-se buscar. Pra mim, Os Caçadores da Arca Perdida merecia ganhar o prêmio. Mas, estão vendo, é a minha opinião - afinal, sou fã de aventura e drama não é meu forte. Assisti Carruagens de Fogo e confesso que não me surpreendeu! A música é que é show! Acho que o título do texto deveria ser "O Oscar e suas injustiças".
Belo filme,primeira vez que discordo do Silvio quanto a uma crítica ou uma nota.
Cirúrgico.