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Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes, além do prêmio de melhor ator (Jonathan Pryce), Carrington é uma das melhores filmebiografias de artista já feitas.

8,0

Uma das melhores filmebiografias de artista já feitas, Carrington - Dias de Paixão é um grande filme porque extrapola e muito os limites desse surrado, conservador e limitado gênero cinematográfico. Ao contar a história não de um, mas de dois artistas, a pintora Dora Carrington e o escritor Lytton Strachey, na Inglaterra vitoriana, o diretor e roteirista britânico Christopher Hampton conseguiu fazer, na verdade, na sua estréia na direção, uma sofisticada obra que discute o amor, a arte, a paixão e sua companheira inseparável, a solidão, mas em especial a atração entre os seres, não apenas sexual, física, mas intelectual e afetiva.

Vencedor do prêmio de melhor ator (Jonathan Pryce, impecável) e o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, Carrington tem belíssima trilha sonora, de Michael Nyman em momento inspirado, que tirou do Adágio para Cordas, de Schubert, a triste e melancólica melodia que embala o filme de maneira marcante.

Conta a história de amor entre a pintora Dora Carrington e o debochado Strachey, autor de um sucesso literário da era vitoriana, a ficção Eminentes Vitorianos. É um autor pouco lido no Brasil, mais conhecido pela sua biografia romanceada da rainha Vitória. Ambos artistas faziam parte do grupo Bloomsburry, que reunia, entre outros, Virginia Wolf e o economista John Maynard Keynes, o pai do New Deal americano, ele mesmo um dos amantes de Strachey - reza a lenda que eles fizeram sexo pela primeira vez num sofá na sala da casa de Wolf, que reclamou pelo fato de terem deixado marcas de sêmen no estofado.

Strachey se interessa por Carrinton pela primeira vez pois pensou que ela, sempre vestida como um menino e metida com eles em esporte, fosse homem. Começam uma relação que ultrapassada todas as convenções de um casamento, seja homossexual ou heterosexual - ele era 15 anos mais velho que ela, pobre, gay afetado e crítico do período vitoriano e das convenções sociais vigentes. Juntos, não ficam na borbulhante Londres, mas vão para o interior, dividindo-se entre o trabalho e os amantes, dele e dela, que nunca conseguiram abalar o afeto que unia os dois.

Hampton, dramaturgo de formação, venceu o Oscar de roteiro adaptado por Ligações Perigosas, que ele adaptou de uma peça sua, por sua vez tirada do romance homônimo de Chordelos de Laclos. É dele Eclipse de uma Paixão (Total Eclipse, 1995), em que Leonardo diCaprio, no papel do escritor francês Rimbaud, aparece pelado fazendo sexo com outro homem, o também escritor Paul Verlaine - DiCaprio odeia ser perguntado sobre esse filme. Hampton, homem de letras culto e sofisticado, especializou-se em adaptações literárias com menor sucesso que os filmes citados. Até hoje não conseguiu nem mesmo repetir o impacto positivo deste seu primeiro filme e corre o risco de passar para a história de diretor de um filme só, à parte sua fama de grande roteirista.

Em Carrington, fez um dos mais belos planos-seqüência do cinema recente. Dora Carrington, sozinha, vê sentada numa pedra os três quartos onde a ciranda de seus amantes se aliviava fisicamente. Ela, que procurava atrair para si os homens que agradassem também Strachey, homossexual convicto, estava pela primeira vez envolvida sexualmente com um homem casado, que a fizera sentir prazer pela primeira vez. Não funcionaria sem a música de Nyman nem a elegância de Hampton na direção e muito menos sem a interpretação de Emma Thompson no papel da pintora. 

Nem Dora Carrington nem Strachey foram famosos em sua época, eclipsados pelos outros artista do Bloomsburry. São considerados artistas menores. Só mesmo a delicadeza de Hampton para tirá-los do anonimato ao contar essa história trágica e bela. Sim, termina trágica, mas numa bela fotografia, mais uma vez com a inesquecível música de Nyman, Emma Thompson manuseando sem jeito a espingarda, procurando dar o único fim possível para aquele amor maior que os dois seres que o experimentaram. Só assista a esse filme se você é capaz de suportar a beleza do jeito que ela aparece tantas vezes: incompleta, fora dos padrões, estranha, inexplicável.

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